Vereador gaúcho tripudia sobre memória dos Lanceiros Negros

A Guerra dos Farrapos, episódio de uma década inteira do século 19, continua causando polêmica e desavença entre os gaúchos. O autor recorda a história dos Lanceiros Negros, importante unidade na luta dos farrapos contra o império brasileiro. Motivo: o conhecido Hino Rio-grandense

Vereador Matheus Gomes, de Porto Alegre

Os lanceiros negros devem estar fulos de raiva com o vereador Matheus Gomes, do Psol, que tripudiou sobre o hino que aqueles guerreiros cantavam de peito estufado quando soltavam suas cargas de cavalaria contra as tropas imperiais na Revolução Farroupilha.

Os lanceiros negros, uma unidade de cavalaria formada por escravos ginetes na Guerra dos Farrapos, foi uma das tropas mais vitoriosas da República Rio-Grandense, temida pelo Exército Imperial, nunca sofreu nenhuma derrota. Entretanto, está sendo apresentada como vítima pelos historiadores anacrônicos ligados ao movimento negro do Rio Grande do Sul.

Carta testamento

O presidente da República Getúlio Vargas. Foto: Jean Manzon

A pretexto de protestar contra a palavra “escravo”, contida no hino (a maioria deles nessa época usava o vocábulo), o edil liderou um ato de desrespeito à memória dos farrapos na posse da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. A seguirem a tendência racialista, deve ser também banida a carta-testamento do ex-presidente Getúlio Vargas, onde o estadista suicida diz que o povo brasileiro não mais será escravo de ninguém.

Unidade invicta

Os lanceiros negros constituíram uma das unidades mais vitoriosas dos exércitos farroupilhas. Nunca perdeu um combate. Na retirada de Laguna, na República Juliana, em Santa Catarina, foram os lanceiros que salvaram Giuseppe Garibaldi de ser capturado, depois da derrota na batalha naval.

Giuseppe e Anita Garibaldi, heróis da Guerra dos Farrapos

Entretanto, numa narrativa inteiramente facciosa e fictícia, eles são apresentados como vítimas de um massacre racista, a célebre Surpresa de Porongos, nos últimos dias da guerra. Entretanto, como provam documentos, os lanceiros não estavam naquele local. Os afrodescendentes que morreram naquele episódio faziam parte da antiga infantaria baiana, uma tropa regular do Exército que, desde os primeiros tempos da revolução, aderira à revolta republicana.

Como se recorda, havia na Bahia um forte partido apoiando os gaúchos, que chegaram a promover um levante armado, a Sabinada. Seu líder, o médico Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, depois da repressão, foi se exilar no Rio Grande do Sul, de onde migrou para Mato Grosso, onde faleceu.

O Combate de Porongos é um episódio fartamente documentado. Mas a narrativa dos grupos identitários se baseia numa carta comprovadamente falsa que o duque de Caxias teria enviado ao comandante farroupilha, David Canabarro, sugerindo traição.

Munição de tiro

O agravante seria que os soldados da infantaria, quase todos pretos e mulatos, estariam sem munição para suas carabinas, recolhida pouco antes do anoitecer. Entretanto, qualquer gaúcho que tenha servido ao Exército, ou os soldados do tráfico de nossos dias, sabem que munição de tiro é muito sensível e que não pode ficar exposta, senão falha, nega fogo. Isto era normal nas infantarias: a as balas e a pólvora eram recolhidas para embalagem adequada, só distribuída aos fuzileiros na hora do combate. Portanto, há muita má-fé ou ignorância nessa acusação, procurando reduzir a campanha de uma unidade vitoriosa em derrotada.

Lanceiros estavam longe

Os lanceiros, no dia do combate, estavam longe de Porongos, sob o comando do general Antonio de Souza Netto. Esse grupamento era constituído de escravos de ganho africanos originários do norte da atual Nigéria, pastores usados nas charqueadas para tropeadas como fito de levar comitivas de gado das Missões Jesuíticas para as charqueadas de Pelotas. Na África Ocidental, esta tribo era conhecida por enfrentar os captores de escravos muçulmanos, que prendiam cristãos para vender no mercado negreiro, homens moços e (poucas) moças para os portugueses, e meninos e meninas para os árabes. Suas lanças compridas foram das armas mais eficientes naquela campanha. É errado dar-lhes a pecha de derrotados.

Opinião

Minha opinião, caro irmão e colega escritor é que tudo deve ser visto com os olhos da época e não com os atuais. Um padre francês, há alguns anos, queria que não se cantasse mais a Marselhesa, por razões semelhantes às do texto acima. É claro que a Revolução Francesa cometeu barbaridades, mas abriu caminho para o fim da monarquia absolutista e o movimento republicano, inclusive dos Farrapos. Estariam Garibaldi e Rossetti tão errados, assim, ao lutarem ao lado dos farroupilhas? Creio que não. Escolheram a melhor trincheira porque perfeita não havia nem haverá. Chamar todos os que cultivam a cultura nativa de apoiadores da ditadura de 64, é denegrir a imagem de muitos que foram torturados de bombacha e bota… Lacy Osório, por exemplo, poeta comunista de Alegrete. Jayme Caetano Braun, outro que só honrou os negros em suas poesias. É tema para duas chaleiras de mate, meu amigo.

Alcy Cheuiche, escritor

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