Normalmente, um documento prospectivo tem por objeto partir do presente para se projetar no futuro, tentar elaborar diversos cenários e encontrar as respostas mais apropriadas para cada um deles. É um estudo que começa no presente e continua avançando no tempo, uma abordagem de compreensão do futuro antecipado que considera a dinâmica de todas as forças – técnicas, científicas, sociais e econômicas, bem como as interações entre fatores sociais, ou seja, a totalidade de variáveis que agem sobre o desempenho dos sistemas sociais ao longo do tempo.
A prospecção é “uma meio de enfocar o futuro, imaginando-o a partir das deduções extraídas do presente”. Michel Godet, em Prospecção no Setor de Defesa no Brasil: O Caso do Exército Brasileiro(1991), define a prospecção como sendo “um panorama dos futuros possíveis, isto é, dos cenários que não são improváveis, tendo em conta os determinismos do passado e a confrontação dos projetos dos atores. Cada cenário (representação coerente de hipóteses) da prospecção pode ser objeto de uma apreciação numérica, ou seja de uma previsão”.
Se nos atemos em entender o que é e quais são os objetivos de um estudo prospectivo é porque assim se define o PROJETO DE NAÇÃO do Instituto Sagres, um think tanks militar, sob a coordenação do general Luiz Eduardo Rocha Paiva e da professora Maria Verônica Korilio Campos, sua vice-presidente. Limitemo-nos ao general Paiva: foi presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais, a ONG do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, mais famoso torturador da ditadura citado pelo então deputado Jair Bolsonaro no voto pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff; Bolsonaro o nomeou membro da Comissão da Anistia, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; em 2021, foi autor da nota “Aproxima-se o ponto da ruptura”, divulgada pelo Clube Militar após a anulação dos processos do ex-presidente Lula na Lava Jato. Um currículo que dispensa comentários…
Como se necessário fosse, a Sagres se somou na elaboração do « estudo » ao Instituto General Villas Bôas, presidido pelo militar que ameaçou o Supremo Tribunal Federal, em 2018, durante o julgamento do habeas corpus que daria liberdade a Lula; e ao Instituto Federativo, cuja filosofia social consiste em defender a caridade, que seria « a mais poderosa força de transformação do mundo ».
Foram esses os autores do famoso documento que se intitula erroneamente prospectivo e que foi lançado com alarde em presença do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão.
Por que erroneamente? Porque eles não partem da realidade, de dados confiáveis, para então se projetar no futuro. Não, eles partem de uma visão ideológica do mundo, fascista, baseada na pós-verdade, para chegar onde eles pretendem, isto é na ditadura. Este é o projeto que vem sendo imposto subrepticiamente aos brasileiros pelas diferentes vertentes do governo Bolsonaro: lideranças evangélicas fundamentalistas, membros de seitas obscuras, ruralistas, armamentistas, antiglobalistas Olavistas, saudosistas da ditadura, hiper-conservadores, anti-ciência, discriminadores e preconceituosos de todo tipo, e sobretudo militares, que ocupam milhares de cargos civis do primeiro, segundo e terceiro escalões. Eram 1.934 membros das Forças Armadas nestes postos do Executivo federal em 2018; 2.765 em 2019; dois anos depois, 6.157.
Segundo um relatório do Tribunal de Contas da União, militares ocupam quase 20% dos 14,6 mil cargos comissionados em 70 órgãos no governo Bolsonaro; sendo que mais de 75% são da ativa. Estes militares são responsáveis por grande parte da burocracia estatal em áreas que vão muito além do Ministério da Defesa, incluindo Meio Ambiente, Economia, Saúde e até Educação.
A pergunta que não quer calar foi colocada pela revista Carta Capital:
– Qualquer pessoa de bom-senso se pergunta como uma parcela tão importante dos militares brasileiros chegou ao ponto de conceber e levar adiante um governo militarizado e aliado a grupos e pessoas movidas por reacionarismo religioso e fanatismo econômico e ideológico ultrapassados, todos “escondidos” atrás de um personagem grotesco e um “mau soldado”, como Jair Bolsonaro foi qualificado por Ernesto Geisel.
O grande problema que se coloca hoje, três anos e meio anos após a eleição Moro-fraudada do ex-capitão, é que esses militares, que tiveram seus salários dobrados, não querem perder a mamata e decidiram permanecer no poder pelo menos até 2035, como mostra o tal Projeto de Nação, assim escrito com todas as letras.
O documento parte do pressuposto que os cidadãos brasileiros, em sua maior parte, identificam-se como conservadores evolucionistas, no campo psicossocial, e liberais na economia. Em outras palavras, seríamos majoritariamente o retrato do início do governo Bolsonaro: hiperconservador como Steve Bannon e liberal como Paulo Guedes.
O Projeto tem como base a criação de um Centro de Governo, que seria uma espécie de governo bis, um órgão independente da administração federal que cuidaria de elaborar e implantar os projetos de Nação, sem ser afetado pelas mudanças de governo resultantes do processo eleitoral. Pelo qual, portanto, o Brasil se transformaria numa mera democracia de fachada.
O Centro de Governo retiraria da mão dos eleitores, portanto dos civis, a possibilidade de alternância do poder. Seria uma estrutura dentro do governo federal, porém totalmente independente da própria Presidência da República, com poderes para administrar todos os Ministérios.
Isso seria, de acordo com o antropólogo Guilherme Lemos, da Universidade Federal de São Carlos, que pesquisa o papel das Forças Armadas no Brasil, citado pelo UOL, “a cristalização do projeto político que os militares vêm pensando desde pelo menos 2014, quando Bolsonaro começa a fazer campanha dentro da AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras)”.
Seria por acaso um novo e sofisticado gabinete do ódio?
Aliás, é de se perguntar se este Centro de Governo já não existe, na medida em que o estudo em questão salienta que graças à sua implantação o Brasil viria a ingressar na OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em meados de 2022. Ora, entra semana sai semana, um ministro brasileiro vai à Paris bater às portas da OCDE.
O Projeto de Nação é a materialização do pensamento militar atual, a emanação do pensamento do Exército para voltar ao Poder, de onde, acreditam ops autores, nunca deveriam ter saído. Seu propósito é legar um Brasil melhor aos nossos filhos e netos,e manter o Bolsonarismo pelos próximos 13 anos. Sua obsessão, o combate ao comunismo, confundido com o globalismo, seu inimigo mortal. Seu objetivo, acabar com a ideologização, onipresente na sociedade, nas escolas, nas universidades. Necessário para tanto “desideologizar” os currículos, privilegiar os conteúdos teóricos e práticos, reforçar os valores considerados morais e cívicos, acabar com a “nefasta” autonomia universitária e tornar o ensino superior pago, da mesma forma que o SUS, Sistema Único de Saúde, que hoje salva os brasileiros mais necessitados, considerados por eles como um peso.
Com relação à Amazônia, os militares propõem a flexibilização das legislações referentes à exploração de minérios, a regulamentação da participação do capital estrangeiro nessas atividades, o fim das restrições hoje impostas pela legislação nas áreas indígena e ambiental, o livre acessoa do agronegócio à floresta, sinônimo de mais desmatamento.
Tudo isso seria implementado por decreto, sem passar pelo Congresso.
Seria portanto, é salutar insistir, o enterro da democracia e o advento de uma era de trevas, da qual o Brasil levaria décadas e décadas para se reerguer.
Este é o Brasil que eles, os militares, querem des…construir É o Brasil dos milicianos, dos policiais que matam indiscriminadamente, que implantaram a pena de morte em chacinas sob aplausos do Planalto, é o Brasil do policial rodoviário que transforma o camburão numa câmara de gás, é o Brasil que destrói o sonho emancipador da mulher negra Marielle Franco, o Brasil da morte de tantos ianomâmis. É o Brasil da discriminação das minorias, de todas as minorias, de todos os racismos. É o Brasil da falta de cultura, de educação, o Brasil da boçalidade, que enche os quartéis de viagra e os hospitais de cloroquina. É o Brasil da tortura como método de governo, o Brasil da antidemocracia e da antiverdade, o Brasil da lei da força, da desobediência à Justiça, do golpe continuado, o Brasil da barbárie, do genocídio.
É o Brasil da tristeza, o Brasil que não queremos para os nossos filhos e netos, o Brasil infecto de Bolsonaro.
Nós como brasileiros, de todas as cores e religiões, “brancos, pretos, mulatos, lindos como a pele macia de Oxum”, nós como judeus que acreditamos na supremacia dos direitos humanos, exigimos a restituição do nosso país, do país do SUS e da vacina, do país que sonhou com igualdade e justiça social, do país sem fome nem miséria, do país com mais Chico Buarques e menos Sérgio Reis. Amanhã voltaremos a sorrir sem medo. Temos direito de ter orgulho e não vergonha. Não, o futuro não será fascista. NUNCA MAIS!
Milton Blay, do coletivo Judias e Judeus Sionistas de Esquerda