Tudo está, afinal, consumado. Sobretudo, resta o sentimento de que o presidente americano está passando por uma crise depressiva, colocando a segurança nacional do país em sério risco. Ninguém mais respeita o Tio Sam. Até o Brasil, cujo Exército é acusado de ter sequestrado, torturado e assassinado milhares nos Anos de Chumbo, ameaçou a iniciar uma guerra contra os Estados Unidos.
Donald Trump não fala publicamente há mais de uma semana, a não ser em comentários por escrito emitidos via Twitter. Ele falou publicamente pela última vez na quinta-feira da semana passada em uma coletiva de imprensa na Casa Branca em que proclamou que ganhou a eleição, fez alegações de fraude eleitoral generalizada e depois recuou sem responder as perguntas da imprensa.
Embora Trump não tenha falado publicamente desde então, ele apareceu por cerca de 10 minutos na quarta-feira no Cemitério Nacional de Arlington para uma cerimônia comemorativa do Dia dos Veteranos. Ele não fez declarações no evento.
“É difícil ter uma ideia” – desabafa um funcionário do Departamento de Estado – “o tamanho do estrago da política externa de Trump. Posso dizer, no entanto que o presidente eleito Jose Biden terá uma missão a cumprir, e a cumprir bem, dando o melhor de si pelo reparo das relações internacionais”.
A equipe de Trump vem se desdobrando em espalhar mentiras e informações falsas. Por exemplo, a secretária de imprensa da Casa Branca Kayleigh McEnany deu uma entrevista na manhã de ontem no programa Fox News Fox & Friends. Segundo ela, o presidente estava focado na epidemia de covid-19 em andamento e outras questões durante sua campanha de reeleição prossegue ações judiciais relacionadas à contagem de votos eleitorais.
Tem sido uma semana de humilhações, embaraços e desestabilização das instituições democráticas. Os últimos oito dias foram os mais longos que Trump já passou sem falar publicamente.
Há uma onda tensa e angustiante nas redações dos veículos de comunicação na capital americana. No entanto, a conta do Twitter de Trump permaneceu ativa. Na quinta-feira, ele retuitou os ataques contra a Fox News – a sua emissora predileta. A rede de televisão do milionário Keith Rupert Murdoch foi atacada por ter declarado o estado do Arizona em favor de seu inimigo e rival político, o presidente eleito Joe Biden, na noite da eleição.
Faltam 68 dias para a posse do novo presidente. A passagem do republicano na Casa Branca vai ficar registrada como o período mais sombrio para a liberdade de imprensa nos Estados Unidos. Em termos gerais, o presidente considera a imprensa absolutamente dispensável. Trump adora a mídia social, principalmente o Twitter.
Nos últimos dias, o republicano disparou vários tweets alegando fraude eleitoral generalizada que ele afirma ter custado a eleição. Sua campanha de reeleição abriu diversos processos em estados indecisos, alegando contagem de votos fraudulenta, mas nenhum dos processos alterou substancialmente os resultados de qualquer estado em seu favor.
Os desafios legais de Trump buscam solução na Justiça antes de cada estado certificar seus resultados eleitorais em dezembro. O presidente e outros republicanos esperneiam que quando apenas os votos legais forem contados, Trump terá vencido. No entanto, não há provas de fraudes nas últimas eleições.
“Juntos, para sempre”
Empenhados numa furiosa maratona, membros da tropa de choque de Trump desabou sobre diversas instituições americanas.
Para o espanto e revolta na comunidade jurídica, na segunda-feira, o procurador-geral William Barr mandou os promotores federais investigar qualquer alegação de fraude eleitoral. Os líderes democratas criticaram sua decisão como infundada e corrupta. É outro fato inédito em Washington, o Departamento de Justiça ser usado como cabo eleitoral do presidente.
Na terça-feira à noite, Ronna McDaniel, presidente do Comitê Nacional Republicano (RNC), disse ao comentarista ultranacionalista da FOX News Sean Hannity que ela tem um documento bombástico de 234 páginas contendo 500 declarações alegando 11.000 incidentes de vários tipos de fraude eleitoral. Mas Ronna não apresentou uma cópia do “documento estrondoso” para comprovar a sua declaração.
No início da terça-feira, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, afirmou que Trump foi eleito para um segundo mandato presidencial, apesar de não ter nenhuma evidência para basear sua asseveração. John Bolton, o ex-assessor de segurança nacional de Trump, chamou Pompeo de “delirante”.
Vozes dissidentes
Em uma coletiva de imprensa na terça-feira, o governador republicano do estado de Maryland, Larry Hogan, articulou: “acho que a maioria das pessoas percebe que esta eleição acabou” e acrescentou que é hora do país “seguir em frente”.
Ontem, o ex-conselheiro presidencial republicano e feiticeiro Karl Rove disse que “não há evidência” de fraude sistêmica na votação nacional e acrescentou que Trump deveria “fazer sua parte para unir o país liderando uma transição pacífica e deixando ir as queixas”
Caos no país e, por tabela, no resto do mundo
George W. Bush exibiu muita dignidade e respeito durante sua transição para o presidente Barack Obama, quando deu ao novo governo tudo de que precisava para começar da melhor maneira possível. Bill Clinton fez o mesmo. Cada presidente nos tempos modernos, por lealdade à América, colocou seu ego de lado e tornou possível uma transição rápida e contínua, independentemente do partido, para o próximo presidente. Donald Trump, não.
Em Hong Kong, outro dia, o Partido Comunista Chinês destruiu o Movimento Pró-Democracia da legislatura de Hong Kong. O que isso tem a ver com os Estados Unidos? Muito. Um dos membros destituídos afirmou: “isso não teria acontecido se não fosse pelo caos nos Estados Unidos.”
A incerteza criada por Trump enquanto ele se opõe a uma transição ordeira de poder da qual todos os outros presidentes participaram está prejudicando o país tanto no mercado interno quanto no internacional.