Saindo de Gramado, no dia dos mortos de 2021, parei no pórtico de Nova Petrópolis, Rio Grande do Sul. Dia iluminado nessa região lindíssima, cheia de vinícolas reconhecidas e culinária de excelência. Vejo dois jovens de vinte e poucos anos de mãos dadas, fotografando, sorrindo, de bem com a vida. Passam por mim e me dão um simpático boa tarde. O casal exalava amor. E meu dia ficou muito mais pleno.
Paro para refletir, em tempos de alta no mercado de preconceitos, sobre a força das relações afetivas e gestos solidários. Sim, sem fraternidade e interação, sem empatia e carinho pelo ser humano, vamos nos descaracterizando, ampliando sofrimentos. E inviabilizando vivências democratizantes. A luta por reconhecimentos é complexa e em vários níveis, anunciava Hegel. O caminho da liberdade é tortuoso. Mas parece exigir um começo, a partir de cada um de nós. As vanguardas parecem sem fôlego, como um caminhão com os faróis voltados ao passado.
O indivíduo como centro revolucionário. Essa é a ideia e a urgência vital. Chega de heróis e salvadores. No Ocidente o golaço nesse princípio é de Cristo, com maior força no senso comum, e de Freud, na racionalização crítica.
Nos dias de hoje o racismo, a homofobia, a misoginia e tantas outras formas doentias de ver o diferente não podem ser naturalizadas, em nome de dada visão de mundo. Esse horror ao que parece ao preconceituoso como negativo de dada representação moral do ser humano, idealizada por um grupo particular, sequestra o Homem de sua esperada maioridade existencial, diminuindo-o enquanto ser racional. Agnes Heller insistiu nesse ponto.
Moral aqui no sentido de valores pessoais que perpassam a normatividade de agrupamentos étnicos, religiosos, ideológicos. Eles guardam vínculos legítimos com culturas milenárias ou expressam desejos e vivências possíveis, crescentes em todo o mundo. Aí estão dadas a singularidade do multicultural. É fato. Queiram os tradicionalistas ou não tradicionalistas.
A sobrevivência das múltiplas (antigas, modernas e pós-modernas) moralidades parece depender da convivência mútua com respeito e construção de vínculos cooperativos. Outras ocorrências e interesses atravessam variados tipos de pluralismos, criando identificadas comuns entre tribos de muitas cores e gostos, fortes liames comunicativos.
Uma identidade no Comum em alta é a intensificação de vivências em mercados mais amplos que aqueles do trabalho, transformados pelas inovações digitais. Milhões de seres humanos, sejam eles cristãos ou muçulmanos, de esquerda ou de direita, carnívoros ou veganos, ateus, seguidores de ovnis ou nudistas, conectam-se não em uma mais a várias tribos virtuais. No consumo, nas condições ou preferências estéticas, afetivo-sexuais, pertinências por lazer, culturas, conhecimento, novas tecnologias. Aí estão dadas as condições de possibilidade das redes alçarem um lugar possível fora da alienação geral. Posto que nelas cruzam-se caminhos nos quais a aldeia digital global permite nichos de artesania intercultural.
A interculturalidade ganha chances reais de avançar, ampliando seus campos institucionais pela via do que já vem ocorrendo, as intercontextualidades. Indivíduos e grupos formam milhares de novas tribos morais (Joshua Green). Essa tribalização explícita desejos, demandas, enfim, expressam modos de vida não exclusivos a um jogo de escolha única.
Tribos modernas e pós-modernas se encontram diante de um conjunto de condições, escolhas, possibilidades. São transmodernos, de alguma maneira. As ações que movem pessoas por pertinência a este ou àquele referencial não se subsumem nem se esgotam na questão de classe, de religião, de situação afetivo-sexual, ou de torcida de times rivais. Essa situação positiva não elimina as posições extremistas, mas poderão diminuir suas forças, robustecidas pelo caos social.
A revolta das tribos originais contra as que aparecem a cada dia diante de nossos olhos, somente pode ser reconhecida (e contida) via alinhamento de interesses. Sob pena de, amedrontadas, apostarem em sistemas políticos autoritários para os quais a alteridade é um fantasma, quando não o próprio diabo.
Nesse sentido de sobrevivência de tribos enquanto riqueza existencial é que a construção da subordinação à uma metamoral da Lei, ou norma geral de sociabilidade, torna-se imprescindível. Sem essa cultura sequer é possível reconhecer dada sociedade. Fora desse parâmetro tribos em guerras antigas vão inventando novas guerrilhas, sabotando a luta democrática e piorando ainda mais o estado do mundo, um estado global de desinformação.
Penso. Indivíduos possuem bichinhos de estimação e cresce a adoção de animais domésticos e silvestres; muitos abraçam causas em defesa dos gatos e cachorros abandonados ou maltratados. Todavia, eclodem comportamentos de intolerância, mesmo entre gente letrada. Discursos ressentidos e de ódio ganham os domínios das redes. Detalhe, genocídios são precedidos de discursos de superioridade de dado grupo em face de outros. No limite, certos seres humanos amam mais seus cães que a humanidade, bichinhos de pelúcia mais que seres de carne e osso.
Pobres, negros ou não, parecem representar um perigo nas ruas, se não estiverem bem vestidos. Se cheirosos com roupas de grife ou dirigindo carros importados suscitam uma mistura de surpresa e asco. Praias são cercadas para isolar banhistas e consumidores fora do padrão vip.
O que dizer daqueles seres humanos distribuídos na população LGTBQIA+ ? Continuam a provocar indiferença ou rechaço social. Sofrem discriminações diuturnamente. Apanham, são humilhados. Mesmo em suas famílias encaram a não aceitação e constrangimentos, sutis ou explícitos.
O rapazes de mãos dadas e toda aquela felicidade irradiante me tocaram. Sim, felizes hoje. No amanhã, quando o infortúnio nosso de muitos dias lhes chegar, pois todos o recebemos, estarão mais preparados para seguir em frente. Escorrer lágrimas e sorrir. É a vida. Esta é muito mais vida entre aqueles capazes de serem felizes, naquele minuto, eterno, entre sofrimentos..
Certos indivíduos e grupos sofrem com um mundo colorido no qual cada um elege seus Deuses e demônios (Max Weber). Tradicionalistas consideram o pluralismo cultural como responsável pela erosão de dada ordem fundada nos costumes do passado. Padecem e sofrem de uma visão nostálgica de tribos antigas, isoladas num território geográfico no qual a sociabilidade e a cultura eram regidas por uma forma única de moralidade. Esse mundo Rui. Tudo mudou.
A modernidade, com todas as suas armadilhas conhecidas (dentre elas as apostas absolutas na Razão e na Ciência) nos permitiu encurtar os espaços forçando o encontro e a convivência de tribos (Joshua Green). Essa sociabilidade exige, por força da Lei e de uma densidade de cultura da diversidade, a convivência de várias moralidades. A isso se pode chamar de metamoralidade, como anunciamos acima.
Como as sociedades industriais imprimiram ao mundo um ritmo de desordens sociais (com modelos sucessivos de acumulações (e geopolíticas) predatórias, bélicas e excludentes, dificultaram-se os processos constitucionais de efetivação de uma cultura democrática progressiva. Nosso tempo é de nítidos contornos regressivos.
Maurício Souza, o brilhante jogador de Voleibol foi infeliz em um pequeno comentário homofóbico. Foi execrado nas mídias virtuais. O verdadeiro linchamento causou uma reação imediata. Na primeira semana do fato, a lacração moral gerou mais de milhão de brasileiros em solidariedade ao atleta. Não são poucos com declarações expressamente homofóbicas com sinais de ódio.
E vamos seguindo em nossas bolhas, quando alienados em preconceitos. Eles isolam o terreno linguístico das convivências mais amplas, obstando o encontro dos divergentes nos padrões de tolerância. Esta, uma condição para fazer avançar a cultura partilhada do viver uma sociabilidade ampliada na qual quanto mais diferente torna-se mais legítima a Lei. Lei como normatividade positiva, mas, sobretudo, como radical padrão cultural civilizatório da alteridade. Sem isso a regressão dificilmente cederá aos caminhos de reais progressos humanos.