Mais de trinta anos se passaram desde que estive a devorar as páginas de um grande clássico da literatura brasileira: “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, livro que marcou definitivamente a minha juventude e que deixou lembranças profundas em minha memória poética. A narrativa épica contida em “O Continente”, primeiro livro da belíssima trilogia, continha personagens inesquecíveis, notadamente do sexo feminino, todas dotadas de energia e força descomunais.
Quem leu certamente se lembrará de Ana Terra e Bibiana, avó e neta, respectivamente, personagens emblemáticas da trama épica narrada por Érico. Umbilicalmente ligadas à terra onde nasceram, as personagens acompanharam, no decorrer de suas vidas e descendência, a formação social e política do estado do Rio Grande do Sul, percorrendo um caminho singular e fascinante.
Deparo-me agora, depois de anos, com a imagem de uma outra Bibiana. Melhor. Com a imagem de duas outras personagens femininas, agora duas irmãs, Bibiana e Belonísia, cujas vidas no áspero meio rural da Chapada Diamantina, compõem, com igual força, o enredo do romance título desta resenha.
Em Torto Arado, o premiado romance de estreia de Itamar Vieira Junior, vencedor dos prêmios LEYA, Jabuti e Oceanos, foi a força revivida das duas primeiras mulheres do romance de Érico que vi entrarem em cena, agora sob novo contexto histórico e sob novo cenário, a Chapada Diamantina, no século XX.
E o que uniria essas quatro personagens, tão distantes no tempo e no espaço? Talvez a urgência de suas vidas, a aspereza de suas sagas, o amor pela terra onde nasceram, o respeito às suas origens, às suas raízes, à sua ancestralidade. A garra para sobreviver em meio ao patriarcado e aos preconceitos de todo gênero.
Torto Arado nos traz a história do silêncio rompido das duas irmãs marcadas por um trágico acidente infantil e suas relações em meio à comunidade quilombola em que vivem. Dentro de tal quadro, o autor disseca e expõe as relações trabalhistas arcaicas que ainda subsistem nos rincões desse imenso país desigual, onde trabalhadores resistem e trabalham em condições análogas à de escravos.
Mas a potência do livro, a meu ver, não reside na denúncia ou exposição crua da rudeza da população quilombola que resiste em condições miseráveis de existência na Chapada Diamantina (ainda que tal traço emane naturalmente do texto), mas na carga poética de suas palavras e personagens.
É esse o traço universal que transpira daquela particularidade narrada pelo autor e que nos conduz à imediata identificação, de alguma forma e em algum momento da vida, com a percepção de mundo daquelas mulheres: suas dores, seus sonhos, silêncios, crenças, decepções e desafios.
A história nos é contada sob três perspectivas, que se encaixam e se amalgamam para gerar o efeito totalizante do final. E esse encaixe das três vozes diferentes que se entrelaçam numa espécie de dança narrativa e poética gera um efeito potente, que redunda no rasgo da esperança – ainda que trágica – que se descortina ao final.
Sim, foi uma espécie de dança poética a que vislumbrei quando a terceira voz narrativa se apoderou da trama e dos corpos de Belonísia e Bibiana para fazer cumprir o destino demarcado pela ancestralidade.
O tempo e o vento trouxeram Bibiana de volta. Que tragam Anas, Belonísias e muitas outras personagens que carreguem em si o vigor original da terra, da cultura e da natureza humana e feminina, e que demonstrem a força libertadora de uma bela e envolvente narrativa.