Lucia Helena de Lima*
Isto aconteceu ontem. A menina, que não devia ter mais de 16 anos, me perguntou as horas. Respondi. Ela então, com um atraso na voz, que não chegava a ser gagueira, começou um desabafo comigo. Que sua pergunta sobre as horas, se deu por causa que sua madrinha havia falado ‘um monte’ para ela, por ter chegado tarde da aula no dia anterior.
Perguntei por seus pais e ela me explicou que a mãe é falecida e o pai mora numa cidade, que agora não me recordo o nome, e que morava com essa madrinha, a qual no meio da discussão por conta da história do horário, disse-lhe que nem as irmãs gostavam dela e que iria mandá-la de volta pra sua cidade. Ela me explicou que o atraso da véspera ocorrera em função de um acidente no trajeto do ônibus, e que, tendo sido a faixa própria interrompida, ela foi obrigada a descer do coletivo, e seguir a pé. Que tentou avisar sua dinda pelo orelhão, mas que ele não funcionara. E que ela também está sem celular.
Argumentei que talvez na hora do nervoso, aquelas palavras tenham escapado contra ela, que me respondeu não acreditar nesta possibilidade. Perguntei então se teria acontecido algo que justificasse a formação dessa tamanha confusão. Ela me respondeu, em tom magoadíssimo, que sim. Algo asqueroso e vergonhoso, segundo palavras dela. Infelizmente, a conversa não pode prosseguir, porque cada uma de nós teve que prosseguir no próprio rumo.
Claro que eu sei que toda história tem dois lados, e que, por trás de ambos, há uma dinâmica familiar envolvida. Mas naquele momento, estava eu, diante da versão da menina, cujo episódio me tocou, porquanto me trouxe à lembrança pequenos flashes de minha juventude, dos meus conflitos internos que eram os mesmos da maioria dos adolescentes de hoje em dia. Sei também, que na minha época, havia uma parcela considerável de pais que não sabiam muito bem como lidar com essa fase tão delicada de seus filhos.
Também fico sabendo que, apesar dos quilômetros e quilômetros de informação que nos são franqueadas por meio da internet, pelo visto, pouco mudou esse panorama e, eu poderia retirar desse acontecido, assunto, para mais de ano. Entretanto, diante da visível ansiedade e agonia da garota referida, ao ponto dela fazer esse desabafo de assuntos tão íntimos para uma mulher estranha, que era eu, prefiro ficar restrita na importância do saber ouvir e principalmente na outorga do voto de confiança para a jovem residente na presente narrativa, e nada disto teria ocorrido.
Este é meu lado materno falando, porque se eu invocar a minha gavetinha da cidadania, o presente texto ficaria do tamanho de um bonde. Nos dois casos porém, a perguntas que eu deixo e deixaria no ar, são exatamente as mesmas: – cadê o princípio da presunção de inocência? Só vigora para estranhos?
* Lucia Helena de Lima é advogada em São Paulo. O texto acima é uma colaboração para Os Divergentes.