Terceira via: impasses da disputa entre populismos em desfavor da democracia

O autor faz avaliações teóricas e históricas sobre os dilemas e as opções dos eleitores que não gostariam de votar em Lula ou Bolsonaro em uma eleição polarizada entre esses dois candidatos

O título pode ensejar asco de muitos eleitores absolutamente desiguais como o são, por razões e fundamentos adversos, lulistas e bolsonaristas. Reconheço uma falsa navalha de Occam nessa provocação, afinal, não se pode aceitar que em nome da democracia se coloque na mesma condição de disputa quem a vem golpeando diuturnamente. Entretanto, penso ser justificada a preocupação, diante da dramaticidade das escolhas imediatas, indagar sobre suas consequências possíveis, o que nos remete à uma crítica mais ampla da gênese cultural de nosso campo do político. Algo urgente para não repetirmos derrotas ainda mais traumáticas, isentando-nos de responsabilidades.

Ao meio de um clima político que nos esmaga ao ponto de produzir questionamentos sobre vínculos de fraternidade, resgato uma reflexão possível sobre em que cultura nos movemos. O eixo deste texto refere-se ao cenário amplo da disputa presidencial deste ano de 2022.

Segundo os filósofos iluministas, esta forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade

Há uma contradição na América Latina, que atinge a todos nós. Segundo Serrano Caldera, o Iluminismo, primou na periferia pelo pelo princípio explícito da igualdade, e somente de modo implícito, por liberdade. Era a tradição da monarquia espanhola, principalmente, reverberando no gigante Brasil.

Entre nós, “o Iluminismo tardio” também apelou para o despotismo esclarecido, clara antinomia da liberdade e da igualdade, valorizando-o”. (In Antonio Maria Baggio (org) O Princípio esquecido. Exigências, recursos e definições da fraternidade na política)”.

Liberdade Igual, o que é por que importa de Gustavo Binenbojm

Gustavo Binenbojm em um pequeno grande livro, “Liberdade Igual, o que é por que importa”, manifesta sua preocupação, em tempos de regressão do estado de direito, com asseguramento do mínimo existencial na sua dimensão material da liberdade, ali onde se encontram os direitos econômicos e sociais básicos, essenciais à dignidade humana. Ernest Tugenhat ((Diálogos de Letícia) denominava de mínimo ético essa condição da vida no que se possa chamar de sociedade.

Pois bem, essas liberdades básicas ainda hoje sonegadas têm como chão histórico um país colonizado durante a Contrarreforma. Ela conformou as mentes dos protagonistas da luta social. Se na Europa a força da laicicidade emergiu como visão de mundo, aqui por efeitos da Inquisição a unidade entre Estado e Igreja não foi  rompida. O poder eclesiástico ocupou as esferas públicas e privadas, misturando-as e dificultando uma sociedade apartada do Estado. Este antecedeu àquela, moldando-a à sua imagem (seletiva, elitista, escravocrata) mesmo após a Primeira República. Binenbojm nos fala, nesse sentido, de uma “cultura política tutelada”. No limite temos na esfera pública a liberdade como um bem escasso (a exemplo do que ocorre na legislação eleitoral abusiva, ou no Poder Judiciário na condição de novo censor máximo do país).

Eis o nosso terreno cultural no qual a ausência efetiva da valorização da liberdade (individual e mesmo no jogo de mercado) causa consequências para uma luta mais adequada e eficaz por igualdade. Sem aquela esta resta condenada à ser um significante vazio.

Juan Domingo Perón e Hugo Chavez

De Peron a Chávez, tivemos, todos os latinos, nossos Messias, representando todo o espectro político… E vamos seguindo nessa toada, nos revezando, cheios de paixão e esperança, temperadas com ressentimentos com os Outros, entre escolha de caudilhos, populistas, nos quais o carisma de feitio pessoal ou resultante dos aparelhos de deformação cultural em ritmos algorítmicos, dirigem os movimentos (e nossas consciências) de uma política em nome de uma modernidade castrada.

Nessa biruta nos tornamos catatônicos. A história nos exige escolher o óbvio. E o recurso ao óbvio distancia-se do bom discernimento na exata medida em que a sociedade desorganizada divide-se entre os que clamam por Lula para nos salvar do demônio Bolsonaro e Bolsonaristas pensando no mesmo sentido, de combate a inimigos, a serem eliminados em nome de um projeto de nova ordem, enfim, liberto de uma ordem podre (da democracia liberal). O que fazer no contexto eleitoral imediato?

Duas opções estão dadas. A primeira, mais fácil, pode inspirar-se, ironicamente, no romance “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo. O personagem forte, coronel Vacariano, era muito amigo de Getúlio, no Rio Grande do Sul. Quando assumiu o poder à força, em 1930, o coronel foi ao Rio para visitar o amigo. Não foi recebido no Catete. Ficou muito magoado! Na eleição de 1950, estava ele a pensar na cabine de votação. Depois de muito hesitar, gritou um “que bosta” e votou no Getúlio!  Neste outubro de 2022, uma opção já no primeiro turno é gritar : “que merda”, e votar em Lula.

Manifestante pró-Lula em frente ao Supremo – Foto Orlando Brito

 

Uma outra opção ainda para o primeiro turno me parece muito complexa, na exata medida em que o que se apresenta como o óbvio na escolha – maniqueizada na guerra de torcidas por Bolsonaro ou Lula, ou na retórica democracia ou fascismo, torna-se um problema quase insolúvel.

Insolúvel tanto na viabilidade de uma escolha fora da polarização  (que terceira via é essa com tantos nanicos e poucos votos?); como nas consequências da vitória, tomando o quadro histórico das próximas décadas,  de qualquer um dos times hoje disparados na corrida presidencial.

Um segundo mandato para o Messias será uma tragédia anunciada. Uma continuidade do grotesco e do farsesco. De outra parte, a vitória de Lula, além de fomentar uma atualização do bolsonarismo como ideologia e projeto orgânico de futuro, tende a multiplicar as incertezas de um pacto transformista (ou de acordo assimétrico entre Capital financeiro e reparação de danos) ainda mais pernicioso às classes trabalhadoras do que aquele de 2002. Lembrar que essa escolha de Lula e sua casta dirigente à época, contribuiu sobremaneira para a desmobilização social e o avanço desentermediador neoliberal.

Mergulhado nessa loucura que é a recusa dos dois candidatos evidentes, Lula e Bolsonaro, penso em ir de Ciro Gomes (ou de  Simone Tebet, se ela crescer muito) um exemplo de coronel candidato ao Saneamento Geral, reconheço. Como as suas chances são ínfimas de chegar ao segundo turno, já me deparo com essa mesma angústia da “alternativa ética”, em face do beco sem saídas, melhor, da sinuca de bico: anular o voto no segundo turno, ou tapar o nariz, os olhos e os ouvidos e votar pela quarta vez no velho líder que tanto nos emocionou e hoje, já conhecidas suas relações íntimas com as más tradições, nos resta como o que temos de menos pior entre tantos gangsters no palco da luta social.

Uma escolha difícil, na exata medida em que somos forçados a pagar o preço da falta de alternativas e de críticas, diante da ampla tradição do despotismo esclarecido nas formas do lulismo mais oportunista do que nunca e do protofascista bolsonarista em tempos da falência das instituições liberais.

– Edmundo Lima de Arruda Jr

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