CPI da pandemia, nova temporada. Sai sucessão presidencial, entram eleições estaduais. Concluída a fase dos ministros que atraiam o fogo de barragem diretamente sobre o presidente Jair Bolsonaro, inicia-se a temporada dos governadores, secretários estaduais e prefeitos. Repleta de pré-candidatos nas suas províncias, a Câmara Alta está oferecendo oportunidade para todos irem ali jogar sua pedra nos pecadores.
Prato para tiro ao alvo de titulares, suplentes e demais convidados, pois todos têm acesso ao microfone das televisões em transmissão ao vivo, que, além do palco, oferece material para as redes sociais, onde cada qual aparece, sozinho e sozinha, espinafrando o governo “genocida” ou rebatendo seus adversários à direita contrapondo-se à indigitada esquerda, às vezes comunista e ateia, outra vezes corrupta e incompetente (é o que se diz ao vivo diante das câmeras e microfones, longe de se atribuir estas opiniões ao cronista). Sem chance para a moderação. Pá-pum. Fla-Flu.
Fio desencapado
Entretanto, politicamente, o que chama atenção dos observadores é a concentração de inquiridores oriundos do Norte e Nordeste. Nestas regiões é onde está mais quente a disputa pelos governos e vagas de senadores. Tanto na Mesa da CPI como nas bancadas espera-se a chegada dos governadores com seus rosários de “culpas”. Nessas suspeitas jogadas ao vento (ou ao ar, pelas tevês?), vai esquentar efetivamente o tempo.
Dinheiro público é sempre fio desencapado. Suspeitas fundadas ou infundadas, um perigo mortal. Muito diferente do que se viu enquanto a CPI mirava num crime de desleixo do presidente da República, algo difícil de tipificar e, muito menos, de provar. A julgar pelas respostas de seus auxiliares imediatos, Bolsonaro nunca falou com ninguém sobre pandemia. De fato, o chefe do Executivo não iria perder seu tempo para falar de um animalzinho tão desprezível quanto um microscópico vírus, quando mais relevante seria aprofundar com seus ministros assuntos mais candentes, como os destinos do mundo e as vãs filosofias. É a impressão que fica do depoimento do ex-ministro Eduardo Pazuello.
Tirando a temperatura
No primeiro depoimento da segunda temporada vai dar para ver tirar a temperatura, com a chegada ao proscênio do governador Wilson Lima (ex-PV, ex-PR e atual PSC) e seu secretário de Saúde, tendo pela frente dois ex-moradores do Palácio Rio Negro, o presidente Omar Aziz (PSD-AM) em fim de mandato, e o senador Eduardo Braga (MDB-AM), reconduzido com 18,4% dos votos em 2018. Nomes fortes, que devem combater com outra figura de proa, o ex-senador e prefeito Arthur Virgílio Neto. Cardápio: oxigênio, ensaio científico falsificado, gestão de verbas púbicas. O palco da CPI é decisivo.
O mesmo no Amapá, onde o senador Ranfolfe Rodrigues (Rede-AP) emerge como figura central, capaz de obscurecer o ex-presidente do Senado, David Alocolumbre, que já estava espanando a cadeira no Palácio do Setentrião, para desespero do atual titular Waldez Góes (PDT).
Nas bancadas, e não só na Mesa, também os senadores dessas regiões altamente disputadas neste momento, destacam-se, dominando a cena dramática. Já se falou do senador Eduardo Braga, do Amazonas, mas também é impressionante o desempenho dos adversários do governador de Sergipe, Belivaldo Chagas (PSD), os aguerridos Alessandro Vieira (Cidadania) e do contundente médico Rogério Carvalho (PT), tão pragmático que sequer faz perguntas às testemunhas, indo direto ao ponto em ataques frontais ao presidente da República, como se aceitasse como inevitável a cara de pau dos depoentes, fazendo o mesmo que os depoentes: em vez de perguntas, como manda o regimento, faz discursos de tribuna.
Disputa acirrada
Da mesma forma, diante de candidaturas de adversários muito fortes, estão os senadores Otto Alencar (PSD-BA) e Humberto Costa (PT-PE), que têm pela frente nada menos do que gigantes da política em seus estados, o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto, na Bahia, e Paulo Câmara, no Recife, herdeiro do clã dos Arraes (PSB) e queridinho do ex-presidente Lula da Silva. Aos dois só resta a CPI para tentar quebrar as resistências dentro de seus próprios partidos, tanto a vaga de candidatos aos governos, como para uma nova candidatura a senador.
Mais provável que ambos voltem a Brasília, em 2023, como deputados, a menos que a CPI dê um novo impulso. Ainda em Pernambuco, o senador petista tem de enfrentar a concorrência do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE) que, em contraponto, aparece nos debates sempre munido de números, com apresentações sóbrias, mas cheias de informações, uma balde de água fria na histeria predominante naquele microfone.
Na direita também há grandes esperanças no potencial de exposição da CPI. Os defensores de Bolsonaro, empunhando suas teses tidas como malditas, como o uso da cloroquina e a indisciplina social (uso de máscaras, aglomerações etc.), para captar o leal rebanho do presidente e chegar ao segundo turno. É o caso do senador Edmundo Girão (Pode-CE) que, no seu estado, Ceará, tem pela frente o legado de um governador muito bem aprovado (que encerra segundo mandato), o petista Camilo Santana, e, mais ainda, dois pré-candidatos fortes a presidente da República, o ativíssimo Ciro Gomes, do PDT, e o recém-lançado Tasso Jereissati, do PSDB, nome nacional, integrante da CPI, mas um discreto participante, perto dos exuberantes concorrentes de sua região.
Bancada feminina
Também surpreendente foi a atuação das duas figuras sulistas que despontam nas bancadas. Uma delas o senador gaúcho Luis Carlos Heinze (PP-RS), assumindo de viva voz a defesa da cloroquina, o que pode lhe render o apoio explícito do presidente Bolsonaro na sucessão ao governador tucano Eduardo Leite. E ainda a senadora Simone Tebet (MDB-MS), uma política de forte presença partidária que, no entanto, foi várias vezes descartada pelo partido para a presidência da Casa.
Dando uma volta em seus correligionários, que indicaram outros nomes para compor a CPI, ela entrou no jogo, aproveitando uma oportunidade, aparecendo inesperadamente na bancada feminina, uma novidade extraregimental. Em nome das mulheres, conseguiu um microfone para se firmar como opção na sucessão em Mato Grosso do Sul, onde terá de enfrentar a não menos poderosa deputada Tereza Cristina (DEM-MS), atual ministra da Agricultura.
O embate entre pré-candidatos e governadores será o cardápio. Há uma proposta de ouvir cientistas e especialistas, mas quem quer saber de micróbios e vacinas? Antes da chegada à capital dos mandatários estaduais para responderem sobre verbas e compras, ainda estará na CPI a secretária de Gestão e Trabalho e Educação na Saúde do Ministério da Saúde, segunda do segundo escalão da Pasta, a quem está sendo atribuída uma importância desmedida na gestão da coisa pública em nosso País, a doutora Mayra Pinheiro.
Dá para antecipar o que acontecerá nesse “testemunho”, pois seu apelido jocoso com que ficou conhecida, Capitã Cloroquina, segundo consta, lhe foi atribuído pelo relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), que o teria lançado aos jornalistas e que colou na secretária indelevelmente. Ela ficará numa situação mais difícil que o ex-secretário da Secom, Fábio Wajngarten, que tinha como documento “indesmentível” contra ele uma entrevista à revista Veja, acolhida como documento inequívoco. O depoente negou tudo e os senadores ficaram sem ter o que dizer, pois o repórter não apareceu para confirmar e a gravação não diz quem ele chamava de incompetente.
Como no caso da Capitã Cloroquina, uma matéria “esquentada” no melhor padrão da nossa imprensa, que nunca deu problemas a ninguém, foi parar na CPI como peça de acusação para cassar o presidente da República. Inconformados, os senadores querem chamar o publicitário de volta. Ele passou ali um dia inteiro e não deu para saberem que é tudo cascata? Assim como o ex-ministro Pazuello, que ficou dois dias no banco das testemunhas, e estão querendo que ele diga o que não disse sob pena de ser submetido a outros constrangimentos.
A ameaça é levar o relatório da CPI a organismos internacionais, pois, pela legislação brasileira, nenhum tribunal deve acolher denúncias de cara-de-pau, nem a Câmara aceitar as denúncias dos relatórios (um do relator Calheiros, outro da minoria), isto se passar, ainda, pelo crivo da PGR. Pelo jeito, o indiciamento do presidente Bolsonaro já é passado. Agora, é iniciar a temporada dos governadores. Aí tem mais futuro.