Nesses tempos tão bicudos nada me choca mais que a falta de civilidade escancarada e disso venho tendo provas todos os dias. Uma empregada doméstica, minha conhecida, me contou que os patrões queriam que ela fosse ficar com um dos filhos internado no hospital por problemas de diabetes. Ninguém podia ou queria ir por causa da pandemia, mas queriam impor esse “trabalho” a ela que, ao contrário dos patrões, não tem plano de saúde, e tem um filho pequeno para cuidar.
Na rua são corriqueiros os descasos com a coletividade, desde pessoas que não usam máscara até outras que brigam e humilham os fiscais. As pessoas estão se lixando para seus semelhantes. O que dizer daquela mulher que foi ao supermercado sem máscara, exigiu poder entrar e ameaçou o gerente, que teve que chamar a polícia, porque ele estava interferindo no seu direito de ir e vir? Não ensinaram a ela que o direito dela termina quando começa o do próximo?
E o caso de uma idosa que xingou, do nada, uma chinesa de porca imunda? E os empresários que estão se aproveitando da pandemia para contratar trabalhadores quase de graça, sem oferecer nenhum benefício como auxílio-transporte e tíquete refeição e ainda estão obrigando as pessoas a trabalharem todos os sete dias da semana, sem folga? Atenção, fiscais do trabalho. Acho bom passearem pelos melhores shoppings de Brasília para flagrarem este abuso e desrespeito ao cidadão.
E o pior é que não são casos isolados. Estão por toda parte, como essa epidemia, se alastrando cada vez mais. O que é estarrecedor é que não é uma coisa que está acontecendo agora por conta do estresse da quarentena.
Essa falta de empatia está, infelizmente, no fundo da alma brasileira. Só agora saiu do armário porque o exemplo de cima não é dos melhores. Descaso completo com tudo e com todos, com a educação e a saúde indo para o ralo, só para ficar nesses dois exemplos. Daqui a pouco vamos ouvir o tão famigerado “sabe com quem está falando?”, que tinha saído do nosso vocabulário não porque entendemos que era errado, mas porque era politicamente incorreto.
Mas os tempos agora são politicamente incorretos. Por isso tenho saudade de outros tempos, não tão remotos assim, onde o diálogo prevalecia, a tolerância com os que pensam diferente era a regra e a elegância nos gestos e nas palavras faziam parte do nosso cotidiano. Sim, estou me referindo ao governo do professor e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, quando o Brasil era visto e ouvido com atenção e respeito pela comunidade internacional e nós, brasileiros, tínhamos a sensação de que, enfim, entraríamos para o primeiro mundo.
Nem mesmo Lula conseguiu estragar essa visão. Muito pelo contrário. O ex-presidente, popularíssimo aqui dentro e também no exterior pelo viés social do seu governo, não fez feio. Surfou na área mundial, onde até hoje conta com alguns simpatizantes e até mesmo admiradores, apesar da pecha de corrupção do seu governo e da prisão que teve que amargar.
Já o capitão-mor que ora nos governa é um espanto. Não consegue pronunciar uma frase sem erro de concordância ou pontuação. Isso seria menos grave se não falasse e fizesse besteira uma atrás da outra. Adora picuinhas e, ao invés de governar, prefere se meter em confusão, arrumar inimigos e proteger uma família pra lá de complicada. Devíamos ter prestado mais atenção no folclórico deputado que ele foi por tantos mandatos. Mas era um entre 513 e seus arroubos passaram despercebidos pela maioria.
Não tivesse entrado em cena a “turma do deixa disso”, liderada pelo Centrão na figura do então corregedor-geral da Câmara, deputado Severino Cavalcanti (PPE-PE), o deputado Bolsonaro teria enfrentado um processo por falta de decoro em 1999 por ter defendido, em um programa de TV, o fechamento do Congresso e afirmado que, no período da ditadura, deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos.
Houve forte reação às suas declarações, com sugestão até de cassação de mandato parlamentar. Tivessem ao menos deixado abrir um processo, quem sabe durante sua campanha presidencial muito mais eleitores no País o conheceriam e não achassem que era possível fazer “uma tentativa dele como presidente para ver no que iria dar”.
Deu nessa tragédia e, para ela, muito contribuiu a polarização do nós contra eles, exacerbada pelo ex-presidente Lula e seu partido. Não, não foi Lula que criou o sectarismo, embora o ex-presidente usasse e abusasse do bordão “nunca antes nesse país” para todos os seus feitos, inclusive os sociais. Mas ele fez recrudescer essa divisão que sempre esteve latente na sociedade brasileira e, junto com a ojeriza que uma parcela significativa da sociedade tem do PT e da corrupção que o partido passou a simbolizar, facilitou a eleição do Bolsonaro.
Agora que o folclórico deputado virou o PRESIDENTE a história é outra. Espero que sobrevivamos ao vírus e a ele.
* Vânia Cristino é jornalista