Os penteados no estilo denominado “afro” são “top”. Estes looks estão em alta. Belas modelos, com diferentes graus de melanina nos seus corpos exuberantes − com destaque para as que, diria Caetano, têm “a pele escura” −, os ostentam em anúncios de bancos, automóveis, óculos de grifes, sites de gestão financeira, cartões de crédito, operadoras de telefonia, computadores, guloseimas e até de empresas geradoras de energia.
Na primeira vez que vi uma mulher ostentá-los, já lá se vai meio século, eram chamados de “cabelos black power”. Tinha eu, então, pouco mais de dez anos quando os noticiários de TV davam conta da perseguição a uma ativista da organização “Panteras Negras” pelo FBI: chamava-se Angela Davis.
Sim. A maioria das mulheres brasileiras é negra ou parda. Natural que as empresas de marketing queiram incorporá-las em suas mensagens, de forma a sugerir certa empatia entre empreendedores e consumidores.
São, afinal, milhões de mulheres que, no Brasil, podem, perfeitamente, exibir fartas cabeleireiras que simbolizariam suas origens africanas. Para usar uma expressão da moda, essas mulheres “empoderam-se” quando assim se apresentam.
Pergunto-me: podem, porém, consumir toda a gama de produtos e serviços que a propaganda protagonizada por suas semelhantes busca vender? Estariam, de fato, enquanto potenciais consumidoras, “empoderadas”?
Há poucos dias assisti na TV ao suprassumo dessa estranha oferta de ilusão. Anunciava-se a inauguração, em São Paulo, do primeiro aeroporto privado destinado a jatos executivos no Brasil. Coroava o comercial o embarque em uma aeronave de uma elegante negra, com sua vasta cabeleira “black power”. Parecia tratar-se de uma CEO, evidentemente.
Quantas são as brasileiras em tais circunstâncias? Vasculhando, por acaso, as páginas de uma revista (dirigida ao chamado público feminino), achei uma foto incomum: a imagem, em um concorrido evento, da bela e elegante CEO da filial brasileira de renomada empresa francesa de malhas finas. Era negra, mas, − que pena! − faltava-lhe a cabeleira “black power” para completar o quadro.
Angela Davis pregava e ainda prega a inclusão social da mulher negra pela política. Seus cabelos reivindicavam o “black power”, mas pela via da política “black powder”, mesmo. Angela Davis era e ainda é “black powder”, isto é, pólvora pura em sua radicalidade política.
Mas antes mesmo dessa onda ultraliberal, a política já vinha, há algum tempo, sendo destronada por uma espécie de neoliberalismo progressista. Esses neoliberais modernos buscam instaurar a democracia do mercado, na qual não há vez para radicalismos, vale dizer, para tentativas de extirpar a opressão e exploração da mulher negra pela raiz.
O neoliberalismo progressista instiga a “libertação” individual pelas eleições solitárias de consumo. Evidentemente, quem faz esse tipo de propaganda, utilizando-se de negras e seus exuberantes looks, sabe que a imensa maioria das brasileiras jamais embarcará em um avião. Muito menos em jatos executivos.
Mas esses marqueteiros introjetam no imaginário de milhões de negras a ideia de que só a soberania do consumidor permite escolhas sem limites. O céu, nos sonhos de consumo, é o limite. E esse só pode ser alcançado individualmente, conforme a identidade de cada um ou cada uma, em uma sociedade simbolicamente fraturada, na qual, a política, como práxis para moldar a ordem social coletivamente, não faria mais sentido.
Angela Davis tem dedicado sua vida a combater essa visão de mundo. Esteve recentemente, pela primeira vez, no Brasil para divulgar suas ideias.
Quantas dessas belas modelos, algum dia, ouviram falar de Angela Davis? Poucas, seguramente. Quantas conhecem seu pensamento? Menos, ainda. Quantas terão comparecido a suas palestras em terras brasileiras? Quase nenhuma, talvez.
Mas todas podem jactar-se, dizendo que “black is beautiful” e que “black” tem o direito de comprar o que bem entender; de roletar por shopping centers, quando quiser. Mesmo que não tenha dinheiro algum. A pele escura, quem sabe, para desgosto de Caetano, também se amarra em dinheiro ou tudo de prazer, jogo e troca simbólica que o dinheiro pode proporcionar.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG