Algumas atitudes humanas são classificáveis como doenças mentais. O negacionismo é um mecanismo de defesa contra uma realidade de tal ordem angustiante que se torna insuportável. Como defesa dessa dor psíquica usa-se a negação da realidade que tanto incomoda. Assim a ameaça de uma epidemia é negada e se transforma em gripezinha.
Para outra ameaça angustiante – a do desconhecimento, a mente se utiliza de outro mecanismo de defesa, a fantasia ou a fabulação. Se não se sabe como lidar com uma doença que progride a pode alcançar a toda população – uma epidemia, portanto, esse desconhecimento real é substituído por um conhecimento fantasiado. A cloroquina resolve! Mesmo que não haja evidências científicas sólidas, os relatos empíricos são suficientes para garantir a racionalidade da propositura e a sua certeza. E naturalmente aliviar a angústia pelo não saber.
O genocídio é uma forma aberrante de crime e o genocida é classificado como perverso ou psicopata. Como racionalização (tentar transformar em racional o que é puramente emocional), podem usar um pensamento do gênero “causar uma morte é assassinato, centenas ou milhares de mortes é estatística”.
Essas observações vêm a propósito das medidas tomadas pelo Governo do Distrito Federal quanto a pandemia do coronavírus. Do mesmo modo que se consegue classificar ou entender as atitudes mentais de alguns governantes, é possível entender, explicar e aceitar algumas de suas medidas no combate a pandemia. A retomada de atividades econômicas com o estabelecimento de protocolos sanitários para segmentos determinados pode ser questionada mas é defensável, sob determinados aspectos.
A manutenção do fique em casa se não for necessária a saída, o reforço dessa ideia para populações de idosos e de risco e o uso permanente de máscara conferem a essas iniciativas do Governo do Distrito Federal um respaldo conceitual que remete cada um à sua responsabilidade individual e coletiva. Responsabilidade de adulto.
Por tudo isso é absolutamente incompreensível – não consegue ser nem relativamente, é absolutamente incompreensível mesmo, sob qualquer enfoque, seja epidemiológico, sanitário, social ou econômico a abertura de escolas no DF. É impossível controlar o contato entre crianças e adolescentes, com seus abraços, beijos e brincadeiras, assim como é impossível garantir o uso de máscaras para essas faixas etárias.
A exposição entre elas e os contatos com pais, mães, avós, tios, primos, professores e outros profissionais em plena pandemia as fazem portadoras, transmissoras, vetores e naturalmente doentes em potencial. E de uma gravidade ainda desconhecida, até pelo volume provável de possíveis alcançáveis pelo vírus. Essa constatação remete a uma pergunta cruel, porém necessária. Existem leitos de UTI pediátricos disponíveis?
Se do ponto de vista de saúde pública é assim, o que se pode dizer sob a ótica da mente? Com meus 42 anos de experiência na psicanálise não sei como classificar essa maluquice. Colocar crianças e adolescentes como responsáveis pelo controle de uma epidemia e expô-las a tamanho risco é de uma perversidade e irresponsabilidade sem paralelo, é algo tão sem sentido que escapa da tentativa de uma nosografia mental. Só pode ser maluquice mesmo.
— Sylvain Levy – Médico Sanitarista aposentado do Ministério da Saúde e Psicanalista da SPB