Em algum escaninho da memória conservo a lembrança da existência, em minha cidade natal Capivari, de reduzido grupo de famílias adeptas da religião “língua de fogo”.
Pesquisei no Dicionário Houaiss e encontrei a expressão com o significado de labareda, chama de fogo, manifestação teofânica através da descida do Espírito Santo sobre as cabeças dos Apóstolos, no dia de Pentecostes. Teofânica, segundo o mesmo Dicionário, é aparição ou revelação da divindade; manifestação de Deus.
O verbete Pentecostalismo, relativo a Pentecostes, é encontrado no Dicionário das Religiões, de John R. Hinells. Alude a “movimento iniciado em Los Angeles, nos Estados Unidos (1906 EC), que se espalhou pela África, Europa e América Latina. Tem sido caracterizado pela cura espiritual e pelo discurso extático em línguas’ (glossolalia) ininteligíveis ou soando como línguas existentes, porém não conscientemente conhecidas pelo discursante” (Ed. Cultrix, SP, 1995, pág. 204).
Os poucos “língua de fogo” capivarianos conviviam de forma tranquila com católicos, metodistas, luteranos e espíritas. Distinguiam-se, porém, pela aversão a medicamentos. Acreditavam na cura sobrenatural. Não faziam proselitismo, eram alheios à vida política, praticavam o isolamento social sem prejudicar a ninguém. Com o tempo, acabaram por desaparecer não se sabe como.
Aversão a medicamentos, vacinas, transfusão de sangue é incomum, mas ainda encontrado em pequenos núcleos de fundamentalistas religiosos. Não raro a imprensa relata o fato de casal que rejeita tratamento médico a alguém da família, vítima de grave doença, necessitado de transfusão de sangue e de cirurgia. O argumento consiste em imperativo de consciência fundado em crença religiosa ou convicção filosófica.
Os “língua de fogo” vieram-me à lembrança após ouvir constantes manifestações do presidente Jair Bolsonaro. Declara S. Exa. que jamais será vacinado contra o covid-19. Quem quiser que o faça, diz ele, mesmo sob o risco de se transformar em jacaré.
Para ser presidente da República a Constituição exige que o candidato seja eleito por maioria absoluta de votos na primeira rodada de votação, ou maioria simples na segunda. Na eventual e quase inacreditável possibilidade de empate, vence o mais velho. É dispensado notório saber em qualquer ramo do conhecimento humano e não é exigida reputação ilibada.
Seja como for, o presidente da República é o supremo magistrado da Nação. Deve ter consciência das responsabilidades do cargo e se esforçar para servir como exemplo de prudência, de equilíbrio, de sensatez. Pronunciar-se de forma impulsiva contra a vacina que cientistas procuram descobrir, para deter a pandemia que só no Brasil provocou mais de 180 mil morte, é atitude fundamentalista, censurável, típica de alguém que despreza a ciência.
Desde a posse, o presidente Jair Bolsonaro dá frequentes demonstrações de desapreço ao idioma português, à liturgia do cargo, ao uso da razão e da boa política na Administração Pública, ao meio ambiente. Na galeria dos presidentes ocupa posição de destaque negativo. É lamentável, pois foi eleito como esperança de unificação do País, de retomada do desenvolvimento, do combate à corrupção e ao toma lá, dá cá, da redução da taxa de desemprego.
Como todo o mundo, foi surpreendido pela pandemia. Ao invés de adotar comportamento prudente, insistiu em considerá-la mera gripezinha, curável com a cloroquina. A sombra Idade Média paira sobre Brasília. Somos vítimas de obscurantismo medieval, característico de período sombrio da História da humanidade.
Chegamos a 2021 sem perspectivas de voltarmos em breve à vida normal. As vacinas talvez comecem a desembarcar no final de janeiro. Se tudo correr bem e o governo federal não criar obstáculos, a vacinação poderá começar em março. Até lá não há muito a fazer, além de ouvir palavras pouco sensatas do presidente Bolsonaro,
Apesar dos pesares, aos amigos e leitores, votos de Feliz Natal. Espero em Deus que o próximo ano nos faça esquecer o trágico 2020.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho