São muitas histórias de vida, muitos momentos marcantes, vividos e vívidos, que eu não esqueci. Histórias que cabem perfeitamente numa letra de Roberto Carlos ou de Milionário e José Rico em “Sessenta Dias Apaixonado” e, até mesmo Odair José em “Eu vou tirar você deste lugar”.
Dona cegonha. Um dos personagens, cujo nome não lembro – encontrei-o duas vezes -, era um ‘cegonheiro’. Transportava sonhos em forma de máquinas e tinha uma história bastante curiosa. Com formação superior em engenharia civil, trabalhara durante anos para uma construtora paulista, mas sua alma era liberta. Nasceu para voar, queria voos mais altaneiros que os trinta e tal andares que construía. Um belo dia, após erguer quatro paredes mágicas e sólidas, resolveu flutuar no ar como se fosse um príncipe. Pediu demissão e foi ser caminhoneiro. Numa cegonha é claro. Me contou que ganhava bem mais e estava livre para flutuar no ar. Como ‘construtor’ não havia comprado sua morada, dirigindo pelas estradas da vida, já tinha um poleiro próprio quando à casa tornava. Também conseguira adquirir um sonho daqueles que o acompanhavam na boleia.
Panela velha é que faz comida boa. De tempos em tempos, cruzava com uma figura engraçadíssima; o Zé das Panelas. Carismático, falante e piadista, andava país afora vendendo panelas numa Caravan valentíssima. Ia de cidade em cidade. Tinha para todos os gostos e temperos. Ferro, barro, um alumínio para lá de duvidoso… estava na estrada fazia muito, já nem lembrava a última vez que esteve em Juazeiro do Norte, no meu Ceará, ali na ‘meiuca’ do Cariri, terra de Padim Padre Cícero. Naquele tempo eu nem sonhava que um dia moraria em Fortaleza e teria, em minha vida, essa pedra preciosa que é a Jade. Ele me contava história, que hoje na memória, eu trago e sei de cor. Uma delas, dava conta de ter conhecido o Padre Cícero e ter participado da romaria das lamparinas com sua mãe. Outra de ter visto Lampião e Maria Bonita acompanhados de Corisco e Dadá. Contava tudo em detalhes minuciosos. O carro era sua casa, a rede sua cama e o céu, salpicado de estrelas, seu teto.
O Gran Circus chegou. Uma única vez, cruzei com uma trupe circense. Pareciam a “Caravana Holliday”, eram, o que eles mesmo se autointitulavam, ‘lona pobre’. No grupo, um palhaço que assumia a posição cômica todo o tempo em busca de uma gorjeta aqui outra acolá. Focava nas crianças que, por ironia do destino, àquela hora, já estavam mais para bater um papo com Morpheus do que com o Carequinha. Não logrando êxito, com os poucos miúdos presentes, acreditou que eu seria um bom interlocutor. Era alcoólatra confesso. Disse-me que nunca adentrou ao picadeiro sem várias doses. Que suas lágrimas, nas apresentações, eram reais. Que ali estava sua família, pois, a verdadeira o abandonara, tantos foram os sofrimentos e decepções que levara para o lar. Pediu-me uma garrafa de cachaça em troca de dez piadas. Eram dez piadas. Hesitei, mas cedi – até hoje me cobro se fiz bem ou não. Perdeu a conta na segunda dose e desandou a emendar uma na outra. Depois da duodécima, levantou-se, agradeceu minha atenção, abraçou a garrafa como quem abraça o coração e sumiu na poeira da estrada. Lembrei-me de Vicente Celestino, que meu amoroso pai tanto gostava, em “O Ébrio”! “Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer…”.
Feito tatuagem, ‘pra’ seguir viagem, quando a noite vem. Havia uma menina, pouco mais de dezoito anos. Fazia ‘ponto’ em um determinado posto de combustíveis na rodovia Lúcio Meira, que liga Volta Redonda a Bom Jesus de Itabapoana, no Rio de Janeiro. Aquelas histórias rodrigueanas que já ouvimos, misto de conservadorismo exacerbado, fanatismo religioso e falta de amor e caridade.
Nunca soube seu nome real, dizia ser ‘Lúcia Esparadrapo’, talvez referência à música do cantor Betinho, trilha sonora da novela “O Cafona”. Nascera no interior das Gerais, também nunca soube a cidade, e caíra no mundo depois de ‘desonrada’ por um namorado, que nunca assumiu o fato. Machismos exacerbados, foi expulsa da família e da cidade. Caiu no mundo. Era doce, tinha olhos verdes e cabelos negros como a noite que a protegia. Nos conhecemos na ‘prima volta’ quando ofereceu seus préstimos. Parecia um zumbi. Estava esfomeada. Fazia dois dias de inanição. Nunca vi alguém ‘traçar’ com tanta fúria um PF. Ficamos amigos e, antes que algum aventureiro lance mão, nada tive com ela. Um dia, suas pares me relataram que os pais, arrependidos, haviam buscado-a e tornado a casa pródigos. Um dos meus grandes momentos, se não o maior, de felicidade plena, nas estradas da vida.
Esperando, parado, pregado, na pedra do porto, acho que rende mais um capítulo.
— Carlos Monteiro é jornalista