Tenho 76 anos de idade. Sou grupo “risquíssimo”. Estou há mais ou menos 1 ano presa em casa, a cada hora envolvida numa ziguizira qualquer, dessas que acometem os velhos que sempre descuidaram de sua saúde.
Fiz um monte de coisas indevidas, segundo os cânones da “vida saudável”: fumei demais, bebi outro tanto, tive câncer de mama e tenho enfisema pulmonar. Vivi tantas vidas que costumo até me esquecer do que fiz outrora… Gosto pouco de comer, mas agora dei pra sentir falta de doces (imagino que seja subproduto da abstinência alcoólica). Morro de medo, hoje, de morrer de covid-19, como antes morria de medo de morrer de parto. “Coisa mais jeca”, eu dizia pra o obstetra, empenhado em conseguir que eu tivesse dilatação porque sempre rejeitei a ideia de fazer cesárea, num tempo em que fazer cesárea significava ficar 7 dias no hospital, cheia de gases dolorosos no abdômen. Quase todas as mulheres que conhecia àquela época preferiam fazer cesárea. Eu não. Gostava mesmo é de sair da sala de parto e comer biscoito e tomar uma chuveirada.
Claro que arrependo, sim, de muita bobagem que fiz na vida. Amores inúteis, isto é, que nunca me fizeram, nem mais um minuto feliz, do que era sem aquelas companhias. Dei aulas (coisa que eu adoravaaa!) e que larguei para mexer com a “política”, como se dizia. Já contei mais ou menos 25 moradias (entre casas e apartamentos) que me levaram a pular de galho em galho, primeiro quando meu pai era juiz de direito e depois, por minha conta mesmo, porque sempre tive pavor de viver presa num mesmo lugar – como também a maioria das pessoas que eu conhecia. Corri mundo e corri perigo.
Mas, me comparando com milhões e milhões de brasileiros e outros povos pobres do mundo, sou riquíssima, pois tenho casa onde me abrigar e aos meus, não mais preciso trabalhar para viver, posso fazer a quarentena e me prevenir contra o vírus, cuja chegada anunciei muito tempo atrás. E não caio no conto das cloroquinas e ivermectinas da vida, essa vida que vai tornando todo mundo meio zumbi, que vitima os que saem correndo de casa e se aglomerando nos ônibus (porque não têm como sobreviver sem trabalhar fora, porque querem se divertir a qualquer custo, porque precisam estar aqui e acolá – pois nem só de pão vive o homem).
Agora, olho em volta de mim e também tenho vontade de sair de casa (vontade que compartilho com uma neta, doida pra cair na farra) mas não tenho nem um pingo de medo do “novo normal”. Como será o mundo pós-pandemia? Como vão viver os que sobreviverem? O que os fará abençoar a vida?
– Vai depender de nós, humanos, tenho certeza. Por que hoje somos assim desiguais porque o próprio homem criou seu inferno, explorando e oprimindo uns aos outros.
Hoje li um artigo em que o autor – com propriedade – teme o domínio da máquina sobre os seres humanos. Quero crer que isso vá acontecer sim, com a imensa maioria que já não possui, no mundo velho, o direito de saber onde está, que não pensa sobre cada coisa que lhe acontece, os mortos-vivos que são milhões e os muito-vivos, que se conta entre os dedos da mão. São bobocas também, mas muito “rempli de sois-même”.
Se matando para ter mais e mais dinheiro (que não aproveitam porque vivem estressados ou aproveitam demais), ou perdem tempo se pavoneando acerca do que acham que é o melhor da vida; mulheres que encontraram o “príncipe encantado” e homens mal-humorados porque não gostam do trabalho que têm, porque prefeririam estar agora, neste exato momento, em alguma praia ou em loucas viagens onde não aproveitam nada porque saem apenas para comprar, não conhecem coisa alguma dos países que visitam, entram e saem de hotéis de luxo e fazem passeios mirabolantes a lugares cuja beleza (natural ou criada pela humanidade) não sabem nem apreciar…
Meu admirável mundo novo não vai ser nada disso. Nele, o conhecimento e a consciência do mundo poderá estar ao alcance de todos – em primeiríssimo lugar! E ninguém vai estar disponível para buscar “salvadores da Pátria”, muito menos os que consideram este país uma “Pátria Amada, Brasil”.
Afinal, quando todos souberem o que lhes está acontecendo, aí será minha vida, aí será meu mundo “pós-normal”.
* Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pelo DCP da FAFICH (UFMG), com a dissertação “Governo Geisel: as Salvaguardas Visíveis e Invisíveis do Projeto de Distensão (1974-1979)”.