Os que morrem não são imortais

O capitão rejeita os mortos e os coveiros, mas segue cavando a sepultura. É candidato a coveiro do próprio destino.

O presidente Bolsonaro - Foto Orlando Brito

A visão sepulcral das escavadeiras estriando a terra fria para empilhar corpos em valas nas cidades brasileiras dá a dimensão exata da nossa indigência e abandono. “O brasileiro tem que ser estudado. O cara não pega nada. Eu vi um cara ali pulando no esgoto, sai, mergulha… tá certo? E não acontece nada com ele”, excretou o capitão Jair Bolsonaro em mais um raquitismo cerebral. A morte o despreza. A despeito dele, ela nos espreita, se avoluma, enluta e anoitece os lares. As famílias sangram, padecem enquanto os poderosos escarnecem.

O charlatão insulta a ciência e chafurda no negacionismo. Agora quer renunciar os corpos dos que nada pegam: “não sou coveiro”. Os mentores da nova política, censuram os caixões expostos no noticiário. Querem reprisar a história 33 anos depois. Se pudessem, ocultariam os cadáveres, como na ditadura que enaltecem. Apreciam mortes invisíveis. A Comissão Nacional da Verdade reportou 210 desaparecidos, encovados em qualquer lugar, jamais encontrados. A opacidade é a doutrina suprema de governos totalitários. Afinal “quem procura osso é cachorro”, regurgitou o capitão sobre as vítimas indefesas dos facínoras fardados de outrora.

Miscigenados, sem raça definida, somos mesmo os vira-latas ancestrais da humanidade, a Baleia de “Vidas Secas”. Matilha desprezada desde do achamento do Brasil. Recolhemos os ossos que o banquete do poder enjeita e vai nos atirando ao longo da história, salivando e abanando o rabo. Domesticados, trafegamos em espaços delimitados e nossa memória é covardemente curta. O passado é pálido. Animalizados, só podemos uivar para os mortos que, amontoados, desmentem o capitão. Os que morrem não são imortais. Não passam de saqueadores da imortalidade.

Cristo e a ressurreição de Lázaro

A busca pela imortalidade fascina a humanidade desde os primórdios. Está na mitologia grega, romana, nos faraós, no cristianismo, entre os imperadores chineses, na literatura, em pactos mefistofélicos, bruxarias, no cinema, enfim, em todos os quadrantes da civilização. Jesus ressuscitou, Lázaro também, Hellboy, clube Marvel e umas criaturas demoníacas jamais perecem. A esperança da vida eterna nos seduz. “Eu sou a ressurreição, a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim, nunca morrerá”, pontificou Jesus sobre Lázaro.

Na mitologia grega o domínio no reino dos mortos é de Hades. Caronte é o lendário barqueiro encarregado de transportar as almas para o repouso definitivo navegando através do rio da dor, o Aqueronte. Descrito como decrépito, enigmático e sombrio Caronte é, sobretudo, avarento. A travessia na barca fúnebre é pedagiada. Daí a tradição de colocar moedas com os mortos em funerais. A plebe está condenada a errar nos arredores por um século até conquistar a isenção no pedágio. Os que não são imortais, inclusive os brasileiros imunizados na alquimia satânica do capitão, acabam por conhecer Hades e Caronte.

Valdemar Costa Neto – Foto Orlando Brito

Embarques e desembarques são da rotina de governos. A nau do capitão teve baixas, mas incorporou longevos tripulantes: os imortais Valdemar Costa Neto e Roberto Jefferson. O capitão não gosta de defuntos. Gosta de lives, prescreve poções mágicas e, pródigo, ressuscita seu berço político original. Quanto aos reforços centristas não precisa se ocupar. Eles não eternos, não largam o osso e renascem apesar de fregueses reincidentes das batidas policiais e sentenças criminais condenatórias. Pode ser o beijo da morte.

O ímpeto espoliador do Centrão, que professam em suas sobrevidas e reencarnações, é igualmente imorredouro. A parelha desconhece Caronte, seja por avareza ou postergação divina. Não pagam pedágio. Assim como o barqueiro do submundo são numismatas. A cada turbulência sugerindo naufrágio, abandonam a embarcação. Encarnam zumbis que navegam famélicos em governos agônicos. Revivem como Lázaro, o leproso. São instintivamente hematófogos. Desimportante se a vítima está anêmica e exangue.

Michel Temer e Dilma Rousseff – Foto Orlando Brito

Representam os mandriões focinhando às margens do Aqueronte tempestuoso do poderosos, especialmente nos momentos de decomposição e rapinagem. A quinta vala do oitavo círculo de Dante os contempla. Estão em toda parte com a fidelidade canina condicionada. Foram devotos de todos reinados recentes: Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Roussef, Michel Temer. Consagram agora a mais penitente fé no messianismo do capitão, que operou um milagre ao ressuscitar fantasmas para ajudá-lo a ficar no poder, após a morte de mais de 5 mil brasileiros: “E daí? Lamento, Quer que eu faça o que? Eu sou Messias, mas não faço milagres”, desprezou Messias Bolsonaro.

O capitão rejeita os mortos e coveiros, mas segue escavando a sepultura da seita e incensando a pestilência dos necrotérios. É candidato a ser coveiro do próprio destino. Na excursão com Caronte em direção aos 9 círculos da Divina Comédia será prudente levar moedas extras das rachadinhas para os seus. Os brasileiros que sobreviverem a insânia poderão levar cravos às lápides, como fizeram os portugueses há 46 anos na revolução de abril. Também em abril, e sem flores, morreu o fascismo, há 75 anos. Nenhum mal é imortal.

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