Goya foi uma testemunha muito especial do que aconteceu na Espanha quando Napoleão resolveu alterar a ordem mundial. Formam-se, então, dois pontos de vista: o do homem de Estado e chefe militar que se colocaria, não só em sua própria visão, mas na da História, num patamar mais elevado que os inúmeros outros que pensaram estar na mesma situação de fazedor de destinos; e o do artista — também o maior de seu tempo — que compreendeu a alma humana em todas as suas nuances, inclusive a da sua degradação pela violência.
As cenas gravadas por Goya em “Los desastres de la guerra” mostram que ela é uma abominação, a expressão do Mal com seus inesgotáveis detalhes sórdidos. O horror está condensado na série de Pinturas Negras que decoravam a Quinta del Sordo — apelido dado pelos vizinhos ao artista em seus anos finais —, como a que retrata “Saturno devorando a un hijo”. Ainda hoje sinto o impacto que tive ao entrar na sala do Museu do Prado a elas reservadas.
Minha amiga Hélène Carrère d’Encausse, secretária-perpétua da Academia Francesa, escreveu, em Le Malheur Russe, que na Rússia os assassinatos políticos só cessam quando são substituídos pela guerra. Lá o mecanismo do poder pela violência é a regra iniludível. O quadro de Goya poderia exprimir dois episódios que marcam em vermelho — ou em negro? — a História da Rússia: os homens que fizeram o renascimento russo, Ivan, o Terrível, e a adesão da Rússia ao século das luzes, Pedro, o Grande, mataram os primogênitos com as próprias mãos.
Há, por isso, uma diferença entre a guerra desta semana e as também horríveis e monstruosas guerras que se espalham pelo mundo, inclusive a nossa própria guerra incivil — pois nossos números são maiores do que os da maior parte delas. A diferença é seu potencial de estender-se ao resto da Humanidade. Já nesse momento em que o Ocidente deflagra, contra a ofensiva armada e arbitrária, o desligamento econômico da Rússia, o mundo globalizado fratura-se e pagará todo ele as consequências indiretas, sem falar do desmonte direto que sofre a sociedade russa.
Mas o que não podemos tirar da cabeça é o descontrole da fera humana quando acuada. Lembro apenas que dois homens, a quem muito se deve o fim de um período de barbárie, Winston Churchill e Franklin D. Roosevelt, lançaram as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, matando mais de 250 mil pessoas.
Como dormimos tranquilos sabendo que mais de seis mil bombas nucleares estão à disposição de um homem — longamente treinado pela KGB a obliterar qualquer sentimento — que vê sua decisão de esmagar um vizinho trazer os custos da guerra a seu próprio país? O uso dessas bombas, mesmo parcial, pode provocar consequências que vão das contaminações radioativas, da fome nuclear, do inverno nuclear até ao holocausto nuclear, a extinção da vida na face da Terra: ninguém, nem mesmo os criadores dessas máquinas de destruir, sabe quais são suas consequências reais. Sabemos apenas o que aconteceu nas duas cidades japonesas e nas usinas de Chernobyl e Fukushima, nada de bom.
Multiplicam-se, felizmente, as iniciativas pela paz. Testemunha e estudioso da História, sei que não é fácil. Raramente vi a paz chegar antes de acontecerem os desastres da guerra. Do homem ser a besta do homem. Das vidas serem ceifadas com absoluta crueldade.
Esperemos que a paz chegue rápido. Se não, que chegue devagar. Mas que chegue, porque, sem a paz, virá o dia em que não saberemos o que aconteceu: estaremos todos mortos.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado, escritor da Academia Brasileia de Letras