No momento em que Jair Bolsonaro, em clima de festa, efetivou o general de intendência Eduardo Pazuello como ministro da Saúde, o Brasil tornou-se o único país do mundo em que, à exceção do vice-presidente Hamilton Mourão, toda a alta cúpula do Estado e governo já foi contaminada pela covid-19. Já estiveram doentes o próprio Bolsonaro e o presidente do Senado, e Congresso Nacional, Davi Alcolumbre, e estão doentes o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, além do Procurador Geral da República, Augusto Aras.
Imagem mais perfeita do país doente em que nos tornamos, à conta de irresponsabilidade do presidente da República, seu governo, e dos que o sustentam, não poderia existir. Sobre eles e sua inação recai a conta dos mais de 130 mil brasileiros mortos pelo vírus até agora. Sobre eles e sobre a elite econômica e financeira bestializada, agarrada, ela e seus áulicos na mídia e nas consultorias, ao cadáver político insepulto de Paulo Guedes.
Entretanto, exceto pelas atitudes do ministro Celso de Mello, que, quem diria, tal qual um Dom Quixote, sem sequer um Sancho Pança ao seu lado, trata com a devida responsabilidade jurídica e política o inquérito da PGR que apura a suposta tentativa de Bolsonaro de intervir na Polícia Federal em favor de sua família e capangas, até mesmo Luiz Inácio Lula da Silva normaliza os potenciais crimes do presidente da República, optando pela arena eleitoral de 2022, como o fez na sua tão incensada, quanto extemporânea, fala à nação no último 7 de setembro.
Os crimes comuns de Jair Bolsonaro, de seus filhos, do entorno político que se formou em torno do bolsonarismo a partir da eleição presidencial de 2018, são auto-evidentes, de tão escancarados. O atual presidente da República construiu sua carreira política e sua vida financeira à custa do expediente de transformar o gabinete parlamentar, e os de seus filhos, em um lucrativo negócio familiar, empregando parentes, parentes de parentes, amigos de parentes, amigos de amigos de parentes, numa espécie de esquema de pirâmide, cujo botim final era lavado, no topo, na conhecida forma de patrimônio imobiliário. Uma espécie de organização criminosa meio tosca, que tinha, e tem, em Flávio Bolsonaro um Michael Corleone travestido de empresário, dono de lucrativo comércio de panetones. Além de imóveis, é claro.
O aparente ridículo da trama e dos personagens, que tem Fabrício Queiroz liderando o elenco de apoio, e no qual aqui e acolá pontificam personagens grotescos como Frederick Wassef, tem sido o escudo perfeito para que a mídia corporativa lavajatista, ou seja, toda ela – a acossada Globo inclusive -, minimize o enredo criminoso como algo como pouco mais que pitoresco. Como se a tragédia que ela encerra, que corrói o espírito da nação a cada dia, com sua fúria criminosa e, no caso da pandemia, assassina, não passasse de uma divertida ópera bufa. E com isso nos leve a todos a esperar 2022 para, enfim, pelo voto, se deixar a tragédia do bolsonarismo para trás. Ou não.
Submeter Jair Bolsonaro ao processo de ter que justificar os seus crimes, dos comuns aos de responsabilidade, e esta tem sido minha tecla que, de tão batida, já está gasta, é um imperativo democrático, como o foi o sabidamente impeachment natimorto de Donald Trump.
Imperativo maior ainda quando, mesmo se sabendo que na ponta da agulha do impedimento de Jair Bolsonaro está Hamilton Mourão, e até por isso mesmo, é preciso julgar também a cumplicidade criminosa das Forças Armadas. Cúmplices como os hoje bem comportados, quase invisíveis, Augusto Heleno, Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, pela cobertura que deram aos ataques frontais de Bolsonaro à democracia e suas instituições, delas inclusive pessoalmente participando. E, junto com os três citados, nesse hipotético banco dos réus, e à frente deles, Eduardo Pazuello, pelo papel que assumiu de desqualificar talvez a área socialmente mais relevante já construída pelo Estado brasileiro, a do sanitarismo, fazendo dela um território de incompetentes fardados.
Pazuello é, depois de Bolsonaro, a personificação mais real do vírus como a metáfora que ilustra com invulgar clareza a falência criminosa do governo diante da missão de, literalmente, cuidar do povo brasileiro quando ele foi submetido ao flagelo que, na Antiguidade, era conhecido simplesmente como A Praga.
A praga que, como numa mensagem simbólica de contornos próximo do divino, foi contaminando aqui, um a um, os homens mais poderosos da República.
- Murilo César Ramos é Jornalista. Professor Emérito da Faculdade de Comunicação da UnB.