O verso e o reverso

A Barata, obra do britânico Ian McEwan, faz uma ironia do Brexit. Na obra, o autor aborda uma fictícia Lei do Reversalismo. Inspirada no autor inglês, a cronista elaborou a Lei do Perversalismo, um projeto governamental baseado no avesso de absolutamente tudo. Lei que, talvez, não seja tão fictícia assim

Nestes dias de isolamento social, por indicação de um amigo, li “A Barata”, pequena novela do escritor inglês Ian McEwan. O texto pode ser interpretado, sinteticamente, como uma sátira política ao denominado “Brexit”, nome popular atribuído ao processo de retirada da Grã-Bretanha da Comunidade Europeia, após mais de trinta anos de integração.

A história foi concebida pelo autor no auge das discussões e celeumas causadas pelo movimento político que redundou no famigerado “Brexit”. Num texto perpassado por aguçada ironia, o autor parece manifestar o seu inconformismo em relação à escolha realizada pela maioria da população britânica que, para espanto mundial, votou, através de plebiscito, pela sua retirada da Comunidade Europeia.

Intencionalmente ao reverso da história narrada no celebrado “A Metamorfose”, de Franz Kafka, o escritor inglês faz uma barata acordar, pela manhã , sob a forma humana, assumindo o corpo do primeiro ministro britânico.

Franz Kafka

A partir da metamorfose ao contrário do sensacional texto que revelou ao mundo um novo adjetivo a partir do nome de um escritor (kafkiano), o personagem de Ian McEwan passa a tratar da execução da Lei do Reversalismo, a nova e populista política econômica (fictícia) do governo britânico a partir da saída oficial da comunidade europeia.

Sob o novo e inusitado modelo político econômico, a população iria pagar para trabalhar e receber para consumir. Este seria, em síntese, o modelo mágico que faria a economia britânica voltar a crescer e fazer a Grã-Bretanha recobrar o auge de sua influência mundial.

Deixo o resto da história para o leitor apreciar em sua leitura particular da obra de McEwan.

Voltemos ao Brasil.

Não há como não fazer a correspondência do texto em destaque com o nosso populismo de ocasião.

Vivemos um tipo de reversalismo por aqui, seja ele batizado com esse nome ou não. Talvez aqui o termo mais adequado seja “perversalismo”

Estamos simplesmente na era do reverso. E do perverso.

Exagero?

Não foi com espanto que assistimos à vitória, pelo voto, de um projeto governamental baseado no avesso de absolutamente… tudo?

Não foi aqui que o presidente eleito disse expressamente que não tinha a intenção de construir nada? Que sua intenção era apenas destruir ?

Não foi também aqui que o projeto educacional vitorioso nas urnas tinha como objetivo desmoralizar nosso maior pedagogo, Paulo Freire, referendado e aclamado mundialmente?

Não foi aqui que um ministro da educação demonstrou desconhecimento do português, a língua – até aqui – oficial do Brasil?

Não é também aqui que o ministro do Meio Ambiente parece querer destruir nada menos que… o ambiente?

Estarei eu enganada ou foi aqui que o diretor da Fundação Palmares , um afrodescendente, negou a existência de racismo no Brasil?

Não faz pouco tempo que um ministro da Saúde foi destituído do cargo por tentar encarar, de forma minimamente séria, o problema da saúde em face da pandemia mundial.

É por aqui também que o ministro das Relações Exteriores tem se notabilizado por causar rusgas e situações embaraçosas com a comunidade internacional.

Salvo engano, a política oficial atual para acabar com a violência está focada na distribuição de armas, não é?

Direitos trabalhistas não foram retirados do trabalhador brasileiro sob a falsa promessa de que criariam mais empregos? Não ocorreu o contrário?

Nosso governante não pretende impor veto ao uso obrigatório de máscaras na pandemia do coronavírus? Não estimula o congraçamento social, ao invés do isolamento social, preconizado mundialmente?

A lista não se esgota. Os exemplos são inúmeros.

O mundo assiste, assombrado, à era do Brasil ao contrário.

Nós também, paralisados e atônitos que estamos com os descaminhos de nosso país.

Direitos humanos, direitos trabalhistas, política ambiental, minorias, saúde pública, educação, cultura, relações internacionais. Tudo caminha em direção oposta à proposta civilizatória.

Nem precisamos de moeda nova para inaugurarmos o perversalismo.

Ele chegou e se instalou. Rapidamente. Estrondosamente. Sem laço de fita para cortar na inauguração. Talvez sob a forma de fogos e capuzes na frente da Corte Suprema .

Torço agora é para a hora do verso do reverso.

E de um verso, no lugar do perverso.

Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região)

Deixe seu comentário