Felizmente o Plenário da Câmara dos Deputados rejeitou o “distritão”. Na disputa entre “o roto e o esfarrapado” sobrou a ressurreição das coligações proporcionais, aquele casamento de conveniência entre legendas, que é celebrado para durar apenas durante a primavera da campanha eleitoral, quando “tudo são flores”. Proclamados os resultados, as flores murcham e cada um cuida de si, como manda a lei de murici. Esperemos que o Senado Federal repudie esse arranjo, pois, em 2015, por meio do PLS 477/15, que se encontra na Câmara dos Deputados sob o número PL 2522/15, regulou a convivência entre distintos partidos da forma correta: a federação partidária, que funciona no Uruguai, com a Frente Ampla, desde 1971, e na Alemanha, com a coligação CDU/CSU, desde 1949.
Mas, voltemos ao famigerado “distritão”. Para começar, não há nenhuma novidade nisso. Atende pelo pomposo nome de “sistema eleitoral majoritário plurinominal”. Isso poderia não ser preocupante, se não significasse hediondo retrocesso. Mais preocupante é constatar que queriam aprová-lo a toque de caixa, logo agora, às vésperas de experimentarmos duas tão aguardadas, alvissareiras e depuradoras inovações em nosso sistema eleitoral: a cláusula de barreira e o fim das coligações para a eleição da Câmara dos Deputados.
“Distritão” é sinônimo de democracia somente para uns poucos: para os endinheirados, para os apresentadores de espetáculos de TV, para os ídolos do futebol e da música, para os milicianos, para os pastores eletrônicos de incautas ovelhas, para os expoentes de corporações, e, agora, para os “influencers” digitais. Pessoas que não enxergam a política para além do próprio umbigo ou, quando muito, os dos que os cercam. Não têm a noção do que venha a ser o interesse público.
Queixa-se o leitor do excesso de partidos políticos? Pois bem: se estivéssemos sob a égide do “distritão”, teríamos, na Câmara dos Deputados, exatamente 513 partidos políticos na disputa por cargos comissionados no governo e nacos de dinheiro público para alimentar as respectivas clientelas! Que beleza, não? Chegaríamos ao paroxismo da grave advertência de Fernando Henrique Cardoso: “A multiplicidade de partidos e sua falta de comando sobre as respectivas bancadas parlamentares obrigam o presidente e seus articuladores políticos a um esforço de Sísifo para conseguir maioria parlamentar, no limite negociando projeto a projeto, voto a voto”.
Mas o que é, afinal, o “distritão”? O sistema eleitoral majoritário, que também é conhecido como “distrital”, pode ser uninominal ou plurinominal. Como o próprio nome indica, no modelo uninominal um único candidato é eleito na circunscrição eleitoral (distrito), podendo sê-lo por maioria absoluta (ex: França) ou maioria simples (ex: Grã-Bretanha e EUA); no modelo plurinominal vários candidatos são eleitos no distrito, conforme a ordem de votação nominal. É o chamado “distritão”. Na proposta que a Câmara dos Deputados discute, o tal distrito eleitoral seria o território de um Estado ou todo o Distrito Federal – daí o uso do aumentativo – e o número de eleitos corresponderia ao atual número de parlamentares atribuídos por lei a cada Estado ou ao Distrito Federal.
Na origem, os escravocratas
O “distritão” foi adotado no Brasil por longo período durante o Império e também na República Velha. De 1824 a 1855, os eleitores de segundo grau – isto é, aqueles escolhidos nas paróquias pelos homens que tivessem “renda líquida anual mínima cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou empregos” – votavam em tantos candidatos quantos fossem as vagas de deputados para a sua respectiva província. Os mais votados eram considerados eleitos. Vale recordar que os eleitores de segundo grau deveriam possuir “renda mínima anual de duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou empregos” e só poderia candidatar-se como deputado quem tivesse, pelo menos, a renda anual de quatrocentos mil réis. Só votava quem tinha dinheiro e só podia ser eleito quem mais dinheiro ainda tinha. Era a democracia dos escravocratas.
Para a legislatura de 1857-1860 adotou-se o voto majoritário uninominal (modelo britânico ou norte-americano). Mas já para legislatura seguinte (1860-1863) voltava-se ao voto majoritário plurinominal, com uma inovação: a divisão das províncias em várias circunscrições eleitorais. Esse modelo prevaleceu até 1875. Nesse ano foi introduzida a “Lei do Terço”, pela qual os eleitores de segundo grau deveriam escolher apenas 2/3 dos candidatos disponíveis para as vagas disputadas. O objetivo era dar vez às minorias, mas o método foi um completo fracasso em seu intento.
As primeiras eleições republicanas repetiram o nosso primeiro “distritão”, o modelo majoritário plurinominal do início do Império, com a supressão da eleição indireta e do voto censitário (exigência de renda mínima). As eleições não eram secretas (“bico de pena”) e mulheres não podiam votar. Em 1892 voltamos a adotar um “distritão” semelhante ao de 1875 (Lei do Terço) com voto majoritário plurinominal próximo, em parte, ao modelo japonês (distritos variáveis, de um a cinco representantes por distrito). Esse modelo foi usado em quatro eleições.
Em 1905, por meio da Lei Rosa e Silva, as oligarquias tentaram dar aparência de tolerância às correntes de opinião divergentes, mantendo o voto majoritário plurinominal (“distritão”). Asseguraram, porém, ao eleitor o “voto cumulativo”, isto é, a faculdade de votar em candidatos tantos quanto fossem as vagas disponíveis, menos um. A novidade não assegurou nenhuma mudança de poder. É a esse mundo que queriam nos fazer voltar.
Partidos para quê?
O que causa perplexidade é o argumento em defesa do “distritão”. É dito que o “povo não vota em partido, mas em pessoas”. Como se, em política, andorinhas solitárias pudessem fazer o verão. Como se a condescendência com essa “cultura” política não contribuísse para a progressiva e lastimável deterioração na qualidade de nossas “representações” parlamentares. Política não pode prescindir de partidos programáticos, ideológicos, com projetos para a sociedade como um todo. Essa premissa é a garantia de alternância no exercício do governo sem recorrência à violência. Partidos políticos são pontos de encontro de pessoas que pensam da mesma forma, em sociedades onde se governa sob o lema “unidade na diversidade”.
Os defensores do “distritão” se esquecem de dizer que o pobre coitado do povo se dana com esse modelo, pois aproximadamente setenta por cento dos votos são ignorados, não têm valor algum. Vão para a lata do lixo. O que precisaria ser esclarecido – e para isso, sim, serviriam boas aulas de civismo – é que, atualmente, mesmo não votando em uma legenda, mas, sim, num candidato, o eleitor está, na verdade, optando por um partido, que terá representação proporcional ao montante de votos que granjear. E que, ao mesmo tempo, o eleitor ali expressa sua opinião pessoal sobre o mais apto dentre os que o partido que ele escolheu está oferecendo à consideração do eleitorado em sua lista de candidatos.
É claro que o atual sistema de voto proporcional de lista aberta comportaria alguns melhoramentos, mas nada como jogar fora o bebê junto com a água suja da bacia. Cito alguns possíveis aprimoramentos: alteração da lista aberta para lista pré-ordenada flexível, ou a adoção do voto proporcional personalizado, também conhecido como “voto distrital misto alemão”; vinculação de votos, sob pena de nulidade, entre a escolha de representação parlamentar (exceto o Senado Federal) e a de chefia do Poder Executivo; aumento do tempo exigido de filiação partidária; e, por último, mas não menos importante, correção da proporcionalidade na representação dos Estados e Distrito Federal na Câmara dos Deputados. São temas complexos que, infelizmente, não podem ser desenvolvidos em umas poucas linhas.
O mais importante é guardar na memória que, no “distritão”, não há lugar para debates de ideias, não há programas políticos; só há preocupação com a satisfação dos interesses daqueles que compõem as bancadas do boi, da “bíblia”, da bala, da bola e da bufunfa.
* Advogado, Mestre em Direito Constitucional (UFMG)