O rei dos vinhos e o vinho dos reis

Que tal sentar-se à mesa de um restaurante de culinária italiana, pedir um vinho caro, prová-lo e recusá-lo? Prejuízo certo para o proprietário, certamente. E se fizer isto duas vezes seguidas, com o mesmo rótulo caro, mas de uma outra safra? Esta é a experiência narrada na crônica de João Alexandre

Foto: Michael Stüb / Pixabay.

Certa noite de um mês de novembro, há uns quatro anos, cheguei a um restaurante italiano, em Florianópolis, cujo chef/proprietário era meu amigo. Encontrei-o furioso. Ele relatou que, na noite anterior, duas pessoas sentaram-se à mesa e pediram uma garrafa de Barolo de um renomado produtor piemontês. Um vinho caro. Ele serviu a safra 1997, uma grande colheita em Barolo. As pessoas provaram o vinho e imediatamente rejeitaram a garrafa. Alegaram que o vinho não estava bom. Sem sommelier na casa e sem querer argumentar, meu amigo aceitou a devolução e abriu outra garrafa do mesmo vinho.

A segunda foi um Barolo 1999, outra grande safra no Piemonte. As pessoas provaram o vinho, conversaram baixo entre si, chamaram o garçom e disseram que a garrafa também não estava boa.  Rejeitaram o segundo vinho. O chef não acreditou. Elas pediram ainda uma terceira. Desconfiado de que as pessoas não conheciam as características de um Barolo, meu amigo disse não ter mais o vinho. Elas pediram então um chileno de entrada, macio e bem mais em conta. Gostaram. O chef espumou de raiva. E guardou as duas garrafas de Barolo.

Foto: João Alexandre.

Na noite seguinte, ele me pediu para provar os vinhos e confirmar se realmente não estavam bons. Trouxe primeiramente a garrafa da safra 1997. O vinho estava aberto há 24 horas. Aerou longamente. Só grandes vinhos suportam isso. Estava simplesmente maravilhoso. A indignação do amigo, com o ocorrido, cresceu. Ele trouxe à mesa a garrafa de 1999. Provei também. Confesso, não sei dizer qual safra estava melhor. Acabei tomando as duas, junto de um belo filé com verdadeiros funghi porcini. Generoso, meu amigo não cobrou os vinhos. Ele relaxou. E tomamos juntos as duas garrafas.

Como é o Barolo?

Barolo é um vinho particular. É austero, na juventude, com acidez e taninos marcantes. Precisa de tempo na garrafa para amadurecer e revelar as qualidades adormecidas no líquido. Um grande Barolo começa a revelar sua exuberância a partir dos dez, doze anos de idade. É um vinho para comprar e guardar. Se conseguir guardá-lo para chegar aos quinze, vinte anos, o tempo mostrará que a espera valeu a pena.

Jovem, o Barolo é um vinho duro. Costuma ser mais fechado no nariz. Com uma aeração prévia, em decanter, geralmente apresenta aromas de frutas vermelhas e negras, especiarias doces e picantes, notas terrosas e florais, entre outros descritores. A acidez costuma ser marcante, nessa fase, e os taninos destacados.

Maduro, o Barolo se agiganta. Ele ganha aromas balsâmicos (unguentos, resina de pinheiro), notas de alcaçuz, frutas negras, flores secas e tabaco, entre outros descritores. Apresenta-se complexo, rico no nariz e equilibrado no paladar, com taninos domados e acidez muito agradável.

Por essas características, um Barolo normal não pode ir para o mercado antes de pelo menos 38 meses de envelhecimento na cantina, 18 dos quais na madeira. Já os Riserva precisam envelhecer no mínimo 62 meses na adega (também 18 meses na madeira) antes de serem comercializados.

Gastronômico e de meditação

Barolo é um dos chamados vinhos italianos de meditação. É um produto de Denominazione di Origine Controllata e Garantita – DOCG, o topo da pirâmide de qualidade dos vinhos italianos. É feito 100% com a uva Nebbiolo. Pode ser tomado só, para pensar na vida. É muito bom. Mas o Barolo é também um vinho altamente gastronômico. Ele acompanha pratos estruturados e robustos, queijos intensos, massas, carnes vermelhas e de caça. É companheiro do brasato, uma carne assada por horas no próprio vinho Barolo. E de tantos outros preparos piemonteses e internacionais.

A origem

Foto: João Alexandre.

Visitei a vinícola Marchesi di Barolo, no coração do Piemonte, noroeste da Itália, na pequena e charmosa cidade de Barolo. Foi ali, no Castello dei Marchesi Faletti, que nasceu este vinho mítico, há cerca de 200 anos. Sua idealizadora foi a Marchesa Juliette Coubert de Maulévrier, esposa do Marchesi di Barolo, Carlo Tancredi Falleti. Ela pediu ao enólogo Louis Oudart que criasse um vinho italiano ao estilo dos grandes franceses. Mas que usasse a uva local Nebbiolo. Oudart se esmerou para fazer um belo trabalho. E assim nasceu o Barolo, chamado na região de Rei dos Vinhos ou Vinhos dos Reis.

Esses vinhos podem trazer no rótulo apenas o nome Barolo ou Barolo Riserva. Alguns rótulos, no entanto, têm impressas palavras como Cannubi, Sarmassa e Brunate. Esses nomes remetem a importantes colinas que abrigam os vinhedos de comprovada alta qualidade. É uma referência de terroirs específicos em Barolo, algo semelhante aos crus da Borgonha. Por esse motivo, alguns especialistas costumam comparar a região de Barolo à Borgonha francesa.

Provei Barolos de diferentes produtores e idades. Compartilho aqui três deles.

Barolo Riserva Marchesi di Barolo 2010 – DOCG – Marchesi di Barolo – Barolo – Piemonte – Itália

100% Nebbiolo. Envelhecimento em grandes botti de carvalho esloveno, barricas de carvalho francês e na garrafa. Cor típica, vermelha com bordas alaranjadas. Aromas ricos em frutas negras, notas de especiarias doces e picantes, noz moscada e pimenta preta, toques terrosos, flores secas e musgo. Boca fresca, acidez vivaz, taninos presentes e finos, encorpado, longo.

Silvio Grasso Barolo DOCG Bricco Luciani 2005 – Azienda Agricola Silvio Graso – La Morra – Piemonte – Itália

Foto: João Alexandre.

100% Nebbiolo. Amadurecimento em grandes botti de carvalho e em garrafa. Cor vermelho rubi com bordas levemente alaranjadas. Aromas intensos de frutas negras, violetas secas, cogumelos, especiarias como a noz moscada e a pimenta preta, notas balsâmicas e de alcaçuz, toques de tabaco. Paladar firme, encorpado, taninos ainda presentes e finos, limpo e longo final.

Barolo Cerequio DOCG 1996 Michele Chiarlo – Piemonte – Itália

100% Nebbiolo. Amadurecimento em grandes botti de carvalho e na garrafa. Cor vermelha clara com reflexos alaranjados. Aromas de frutas negras, trufas, musgo, violeta seca, especiarias doces e picantes, notas balsâmicas, café e alcaçuz. Boca fresca e muito equilibrada, taninos sedosos, acidez agradável, longo final.

Deixe seu comentário