Ainda penso em uma menina de apenas dez anos. Felizmente, muita gente mobilizou-se para ajudá-la diante de uma situação extrema. Triste e pesada. Preocupo-me com o futuro dela.
Aqui e ali se noticia que serão tomadas muitas providências para ampará-la. Que sua família terá casa, comida garantida e demais gastos que compõem, desde que o mundo é mundo, o campo das necessidades humanas básicas. Tomara, mas tomara mesmo, que ela também tenha escola diferente daquela que frequentava, se é que ela tinha escola para frequentar. E que o atendimento elementar das coisas que a vida requer para crescermos como gente permita afirmar, lá na frente, que não terá passado privação alguma.
Mas só isso não basta. Como na antiga música dos Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte / a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”. Temo que se esqueçam de que toda mulher aqui nascida também demanda ser feliz na sua vida pessoal. Inclusive na parte mais íntima, ou seja, justamente ali onde um indecoroso a violentou.
Hoje, vejo minhas netas conversarem muito, mas muito mais livremente, sobre sexo do que eu poderia no meu tempo de menina. Será que romperam mesmo os imensos tabus que me cercaram, e ainda me cercam? Pobre de mim, que fui criada com medo do pecado e sem conhecer meu corpo a ponto de tratá-lo apenas como um complemento sine qua (non) para cumprir nesta vida os sagrados deveres de esposa, mãe e avó!
Digo e repito: tenho medo de que todos estejam preocupados em dar a “esta menina” o que sua vida de pobre ia mesmo negar-lhe, fosse qual fosse seu destino. Mas ninguém, ou quase ninguém, pensa no restante porque neste assunto também muitas mulheres burguesas e de classe média passam sua vida em brancas nuvens, esperando que um príncipe encantado saberá beijá-la, acariciá-la e lhe propiciar muito prazer na cama. Imaginemos, então, o caso de uma menina estuprada dos seis aos dez anos. Terá ela também o destino de uma mulher insatisfeita que nem sabe que o sexo pode ser uma delícia e que ela tem direito a usufruir dele como parte da vida?
A preocupação se agrava porque não sabemos ainda quais serão as consequências de se ter um governo tão obscurantista quanto esse que aí está.
Pensemos apenas no seguinte: para os homens, existe, há algum tempo, como todo mundo sabe, drogas eficazes contra a disfunção erétil. Todo mundo sabe, também, que até hoje pouco existe para resolver problemas que as mulheres possam ter em relação ao sexo. Dito isto, pensemos o quão difícil será construir um futuro para “esta menina”, no qual seja possível apagar todos os vestígios da brutalidade que sofreu.
“A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”.