Conservadores alvoroçam-se; articulam-se para uma nova cruzada. A motivação para a guerra? Um brinquedo de silicone flexível, que se tornou uma febre entre a criançada. Chama-se “pop-it”. Os mais exaltados na sanha por repudiá-lo consideram-no “coisa do diabo”, forjado para desunir famílias. Consta que teria sido criado nos momentos mais agudos de recolhimento social, durante a pandemia de covid-19, para aliviar o estresse de crianças enclausuradas e entediadas, saudosas, por certo, das algaravias escolares. Seria uma espécie do gênero “fidget toy”, que congrega essas traquitanas concebidas para arrefecer a inquietação infantil ou infanto-juvenil.
Mas, por que afinal, esse brinquedo estaria a causar tanta agitação entre pais? Tudo indica que a razão da revolta reside no fato de uma das versões do “pop-it” ter sido produzida nas cores do arco-íris, levando inquietação a lares que se dizem seguidores de “orientações cristãs”. Pais e mães estariam a alegar que o ingênuo passatempo seria uma ardilosa maquinação de designers e marqueteiros envolvidos em políticas de orientação sexual ou identidade de gênero para a difusão da “ideologia LGBTQI+”.
Causa perplexidade verificar que certa militância religiosa é pródiga, sobretudo pelas chamadas redes sociais, na difusão de teorias conspiratórias, mas tímida no exercício da leitura cotidiana das fontes tradicionais de suas crenças. Por isso, talvez, nem merecessem esses sectários o epíteto de fundamentalistas, já que sequer se amparam, no caso da vertente judaico-cristã, em interpretações literais de textos bíblicos para justificar seus posicionamentos. Observo que um fisioterapeuta, frequentador de uma igreja evangélica, divulgou recentemente, em seu canal no YouTube, sua posição favorável ao “pop-it”, esclarecendo que liberou o brinquedo para entretenimento de seus filhos menores. Ele lembra, em seu vídeo, que o “pop-it” remete, sim, às cores do arco-íris, mas acrescenta que o arco-íris teria sido o sinal de uma “aliança que Deus fez com Noé e seu povo para mostrar que não mais acabaria com o mundo por meio de um dilúvio”.
De fato, o Livro do Gênesis registra a narrativa do compromisso divino com a preservação da vida (Gn, 8, 12-17). Quantos não seriam, dentre esses militantes da higidez familiar heteronormativa, profetas da morte pela negação das mudanças climáticas, pelo desdém no enfrentamento de pandemias? Levam-nos a supor que o próprio Criador não teria tomado em consideração, em sua aliança, que o próprio homem poderia acabar com o mundo por meio de um novo dilúvio e/ou, concomitantemente, pela propagação de epidemias de toda ordem.
Tudo isso considerado, chego a pensar com meus botões que, se Sem, Cam e Jafé já tivessem filhos durante o dilúvio, certamente Noé teria se valido do “pop-it” para entreter os netinhos confinados, durante quarenta dias e quarenta noites, em uma arca hermeticamente cerrada!
Para além da desídia na pesquisa dos cânones, crentes obtusos demonstram profundo desconhecimento de fatos históricos. Muito antes de a bandeira do arco-íris ter se tornado símbolo da luta por direitos do movimento LGBTQI+, já era erguida por um dos líderes protestantes da Reforma, no início do século XVI: Thomas Müntzer. Dito teólogo fez da bandeira do arco-íris, resgatando o que teria se passado com Noé, o estandarte de um novo tempo, no qual a essência do cristianismo seria a humildade, a igualdade, a solidariedade, a divisão dos bens. Tendo em conta esses princípios, afastou-se de Martinho Lutero, que, segundo Müntzer, teria se aliado aos príncipes eleitores, desejosos do apossamento dos poderes e das terras da Igreja Católica.
Dizia Müntzer que “a maior infâmia da terra consiste em que ninguém quer tomar para si a miséria do pobre; os grandes desse mundo agem como querem. Eis, pois, o auge da avareza, do sonho e da pilhagem dos nossos Príncipes e senhores: apossam-se de toda criatura, sejam peixes n’água, aves no céu ou plantas na terra; tudo deve ser seu. Em seguida espalham o mandamento de Deus entre os pobres, e dizem: Deus ordenou que não roubeis! Contudo, não acharam uso deste mandamento para si mesmos.”
A pregação de Müntzer serviu de rastilho para a Revolução Camponesa (1525), fortemente reprimida pelos senhores feudais, com a aquiescência de Lutero. O “dissidente” reformista foi preso pelas forças aristocráticas coligadas, barbaramente torturado e, em seguida, decapitado. Sua cabeça foi colocada na principal praça da cidade de Mühlhausen, onde foi detido, como aviso contra futuras sedições.
Enquanto discutimos se devemos ou não permitir que crianças brinquem com um passatempo feito com as cores do arco-íris, deixamos que a bruma do esquecimento nos afaste da história de um porta-estandarte da bandeira do arco-íris, que devotou a sua vida à demonstração de que Deus não está lá no arco que a refração da luz solar projeta nas nuvens, mas que, na verdade, Ele está entre nós.
. Thales Chagas Machado Coelho, advogado, é mestre em Direito Constitucional (UFMG)