Ignorando o nariz torto de muitos economistas, podemos simplificar o Plano Cruzado como uma tentativa, no governo Sarney, de se encontrar uma solução para a crise econômica dos anos 80 que não resultasse nos sacrifícios do receituário ortodoxo do Fundo Monetário Internacional (FMI): corte dos gastos públicos e redução da demanda interna, com suas consequências sociais conhecidas. Mas esse caminho suave, esse filé sem osso, não foi encontrado, nem no Brasil, nem em Israel, nem na Argentina, nem em diversos outros países que enfrentavam crises parecidas, e o caminho foi apelar ao receituário ortodoxo.
Agora, estamos vendo experiência semelhante, mas acontecendo na política: grupos que conquistaram o poder de forma heterodoxa, com manobras político-jurídicas que levaram ao afastamento de uma presidenta eleita, correm para implementar medidas econômicas ortodoxas nesse interregno, mas sem ter que enfrentar o difícil caminho da política ortodoxa, como podemos chamar os mecanismos democráticos tradicionais.
Ao relembrarmos o Cruzado original, constatamos que, após muitas tentativas infrutíferas de atalhos, o povo cansou-se, e a partir de 1993 se abriu às medidas ortodoxas que resolvessem o problema. As urnas e os debates posteriores foram processos legitimadores das medidas adotadas, via Plano Real, que não obtiveram unanimidade mas alcançaram o apoio social majoritário. E se consolidaram com os resultados positivos obtidos posteriormente. Mesmo assim, obtida a estabilização, a sociedade exigiu o segundo passo, o pagamento do seu troco, a redução da desigualdade, mediante a adoção de investimentos e políticas sociais que se estabeleceram no ciclo seguinte de governo, a partir de 2003.
Mas esse roteiro político que levou à estabilidade econômica foi esquecido por muitos dos líderes que estiveram à frente daquele processo. Agora, tenta-se repetir a receita, mas sem o difícil caminho da política, sem o debate franco e aberto das medidas draconianas, em um ambiente de anormalidade institucional que por si só desaconselharia medidas de cunho duradouro.
A grande lição que podemos trazer do Cruzado, é que uma hora as pessoas se cansam do problema e aceitam soluções duras. Mas não abdicam de participar da decisão. Atropelar essa postura, como estão fazendo – especialmente na área fiscal, da previdência e trabalhista— aproveitando o lapso institucional para aprovar as agendas anteriormente rejeitadas pelo eleitor, não significa avançar na solução, mas retardá-la. Medidas que num ambiente de normalidade seriam aceitas a contragosto, mas aceitas, serão nesse processo de agora regurgitadas tão logo possível.
Em algum momento, em um, três, cinco anos, uma nova pactuação política terá que ser feita para que a normalidade se estabeleça. E nessa pactuação, o que foi empurrado goela abaixo da sociedade, será revisto. O que for inconsistente, será reformado. E a sinalização para os investidores será a de que o Brasil “recua” novamente. Mas não, não será um recuo, mas a limpeza da espuma do chope que, de forma arrogante, se projetou além da borda do copo. A culpa não será de quem vier a corrigir os rumos, mas dos que enganaram os agentes econômicos com ilusões, levando-os a dar seu aval a esse “Cruzado Político”, que sepultou a possibilidade de uma solução negociada para superar a crise no governo Dilma.
Empresários e investidores, nem todos, foram iludidos por políticos, por analistas, pela mídia majoritária, com a ilusão de que seria possível, num bypass, colocar a economia nos trilhos. Esqueceram-se que, também na política, não há almoço grátis. Qualquer mudança consistente e sustentável é dura, é difícil, é negociada, e nunca acaba do jeito que se inicia. Ela será o resultado da média das forças da sociedade.
Ninguém aceita perder direitos duramente conquistados se não for convencido, primeiramente, de que o sacrifício é indispensável; em segundo lugar, de que não está carregando nas costas o seu fardo e o de outro que, por acaso, está jogando tênis enquanto você o ajuda com a carga. Hoje não há consenso sequer sobre os diagnósticos, quanto mais sobre as soluções propostas. E isso só se corrige numa mesa de negociação, onde estejam representadas todas as forças políticas reais da sociedade.
Truques e manobras podem alijar alguns setores sociais da tomada de decisão, fortalecendo o poder autocrático. Mas os excluídos da formulação continuarão existindo, e em algum momento forçarão o pêndulo a voltar. O Cruzado Político não produzirá milagres sustentáveis, como não o fez o plano original. Não há atalho na democracia. Ou as medidas seguem o curso natural da pactuação legítima e real, ou a economia continuará entre soluços e saltos de galinha, sem encontrar a redenção consistente.
José Ramos é jornalista. O texto acima é uma colaboração para Os Divergentes.