Esse episódio grotesco da ordem do Presidente da República para não comprar “a vacina chinesa do João Doria” permite muitas análises. Começa pelo descarte de um acordo republicano, supra-partidário e supra-institucional, entre os mais altos representantes do poder executivo da entidade federação: Ministro de Estado e Governadores. Continua com o acatamento dessa ordem pelo subordinado que não se demite, confirmando que o capitão manda em general, quando é reconhecido como Comandante em Chefe das Forças Armadas.
Na prática termina com a declaração do secretário-executivo, desdizendo tudo que o Ministério e o Ministro haviam dito e apagando do site do Ministério da Saúde o que havia sido ali postado. Aula de “desistoriarização”.
Aliás foi muito bem escolhido o personagem para em alto e bom som (mais alto que bom), mentir sobre o desmentido. Ninguém deve se esquecer da sua aparição com um boton com a caveira na lapela. Para louvar a morte nada melhor que um caveirinha, pois é disso que de tal fato deplorável trata. A possibilidade de mortes por um vírus que já enterrou mais de 156 mil brasileiros.
Além dos fatos as justificativas são pueris e já analisadas por vários jornais e personagens, permeadas de mentiras e falsas informações. Ficou evidente que a briga política entre Presidente da Republica e Governador de São Paulo estava por traz da ordem que motivou a “des-ordem”.
As motivações para essa triste pantomina podem ser encontradas em dois ambientes: o racional e o emocional. No racional foram as manifestações de apoiadores que geraram a ordem bolsonariana de não comprar a vacina a ser produzida no Brasil pelo Instituto Butantã, de São Paulo, já responsável por 75% das vacinas utilizadas pelo PNI, o Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde. Algumas dessas mensagens em redes sociais protestavam contra o acordo com o governo paulista, “traição aos políticos que sempre estiveram com Bolsonaro”, contra a vacina, contra a China, contra dar dinheiro para o Doria, contra a obrigatoriedade de imunizar, o que não deixa de ser irônico ouvir de favoráveis a ditaduras e torturadores falas a favor de garantias de liberdade individual. Resumindo, tudo muito científico e racional.
No campo emocional verifica-se na malfadada ordem a necessidade de agradar ao grupo de apoiadores e fazê-los se sentir pertencentes ao estrato dominante e, também, co-partícipes do poder e, desse modo, o Presidente vê diminuir a solidão e o abandono. Mas a lógica instalada fica sendo a de que “governo para os meus e os outros que se danem”. Esse é o outrocídio. O desprezo por quem não é igual, do mesmo credo ou professa as mesmas convicções. É a desqualificação e a morte do outro.
Que fica expressa, ainda, na ignorância de que numa epidemia aqueles não imunizados (os meus) podem contaminar os demais (os outros). Mas isso não me diz respeito, deve “pensar” Bolsonaro.
— Sylvain Levy – Psicanalista da SPB