Teorias não surgem do nada. Podem ou não impactar o mundo, para mais e para menos, para o bem e para o mal. Conceitos sofrem muitos usos (e abusos, acrescento) nas ciências humanas, segundo José D’Assunção Barros (Os Conceitos). Visto desta forma, conceitos relacionam-se com o meio ambiente por via de mediações díspares (intelectuais, culturais, políticas), produzindo e reproduzindo a sociedade em suas especificidades e nuances.
Sem cultura e instituições fortalecidas no enfrentamento e na oferta de soluções partilhadas – para interesses e conflitos, restam bloqueadas as possibilidades de organização social democrática. É dizer, a Sociedade dígna desse nome deve ser capaz de ser protegida contra as formas autoritárias de poder, governo e mesmo de gestão em domínios do privado.
Onde nasce ou morre essa capacidade de proteção? Uma indagação necessária diante de um presidente que em nome de uma nova ordem postula uma democracia, usurpando-a diuturnamente.
Em pleno século XXI observamos uma nova onda autoritária, generalizada nos centros e periferias do mundo, conforme Adam Przeworski (Crises da Democracia), nela ascendendo uma tendência de cariz totalitário. O fascismo renasce, alerta Jason Stanley (Como funciona o Fascismo), evoluindo em seus ciclos, como o quer Ruy Fausto (O ciclo autoritário).
Derrotamos o nazifascismo na segunda guerra alicerçados nos pilares do estado de Direito em pleno desenvolvimento com a reconstrução europeia; as independências de Colônias; o crescimento sindical. Hoje o necessário enfrentamento dos ensaios totalitários apresenta mais dificuldades. Uma delas é a degradação dos sistemas democráticos; o encolhimento dos movimentos sociais e o esgotamento das energias utópicas conhecidas.
A fadiga dos sistemas constitucionais ocidentais dificulta a luta processual de contracultura na baliza legal. O fato permite o retorno de teses típicas de totalitarismos de direita (anti- igualitarista), mas também de totalitarismos de esquerda (igualitarista,) bem estudados por Ruy Fausto (O ciclo do autoritarismo). Ambos emergem quando há empates hegemônicos ou, no caso atual, um outro vazio no poder resultante de uma sucessão de crises, dentre elas a social e a imaginária, de proporções ainda não bem compreendidas em todos os seus impactos.
O ataque à democracia liberal representa algo mais profundo que seu relativo esgotamento histórico diante de um formato de mercado no qual prevalece a perversa hegemonia dos agentes da financeirização em detrimento de outras frações do Capital (subalternizados e esmagados pela força da acumulação ultraliberal).
O que se encontra em jogo é a Democracia, algo mais importante que a sua forma histórica escorada no liberalismo político, no mercado capitalista e, principalmente, na dominância do Capital volátil, talvez fictício.
A democracia liberal pode até morrer, mas nunca morrerá a luta por democracia em outros modelos, mais além dos seus limites estruturais e históricos. Há esforços no sentido de repensar instrumentos múltiplos para iluminar os debates.
Enquanto houver desejo haverá vida por democracia. E o desejo é movido pela falta, ensina Freud. Falta de mais direitos humanos, por exemplo. Falta de tolerância na divergência. Falta de um imaginário repleto de instituições com crédito de confiança. Aí reside a pedra no caminho. Richard Rorty (Para realizar a América) afirmou que a autoestima de um indivíduo depende em boa medida do sentimento de honra com relação ao seu país.
A autoestima do brasileiro não é alta, medianamente baixa. Ela responde à uma sucessão de frustrações e à falta de perspectivas. Nessa condição é que os discursos ultranacionalistas ganham terreno. Bolsonaro soube capitalizar a força da bandeira e hino nacionais. Mas há sempre possibilidades de virar o jogo.
As grandes utopias dos séculos passados desbotaram-se nas razões históricas do século passado, mas o sonho libertário-emancipatório é parte insuperável da resistência à todas as formas de opressão, portanto, ainda guarda potência para novas reconfigurações do agir revolucionário.
Por certo, o desejo vem sendo em parte entorpecido, vilipendiado e assim sendo, alienado nos mecanismos de poder da ultradireita protofascista. Esta, em nome de uma nova democracia desintermediada, leia-se, sob diretivas populistas de uma liderança não democrática, produz mudanças “por cima”, dispensando ou despotencializando o funcionamento das instituições republicanamente consagradas.
Mas o que subjaz na profundidade da urgência da questão democrática?
Trata-se, diante da verdadeira antropofagia nos mercados e da implosão do Estado Constitucional, da proteção da permanência do que podemos conceituar como Sociedade. Eis o desafio imediato: o resgate e a construção imaginária da Ordem, não qualquer ordem, mas ordem da Democracia.
Uma ordem plural legitimamente balizada pela Lei e por procedimentos democráticos depende de uma efetividade ou legalidade (ordenação) que precede a normatividade estatal ou aquela firmada nos espaços públicos não estatais. Ela responde à espontaneidade efetiva quanto ao senso de Justiça um tanto castigado por nossas elites arcaicas. Outrossim, o certo e o errado que formam o sentimento de Justiça Justiça logo na primeira infância, vêm sendo minado pelos donos do poder e do dinheiro, como sustentam Edmundo Lima de Arruda Jr e Marcus Fabiano Gonçalves (Fundamentação Ética e Hermenêutica: alternativas para o Direito).
Os efeitos deletérios dessa despotência normativa geral abala e prejudica a nomeação de possibilidades e a execução de alternativas para a liberdade e para a igualdade.
Indivíduos em suas vivências particulares e públicas sem referências morais (comunitárias ou não) compatibilizadas na necessidade de crer e valorizar as instituições, impedem ou retardam o progresso civilizatório, permitindo a legitimação da barbárie.
Uma ordem social incapaz de cultuar Leis, reproduz a desordem. É dentro da concretude do mito (ou ficção) da normatividade nos planos da consciência individual/grupal que estão dadas as condições e possibilidades das leis se tornarem mais efetivas, ou não, diante do poder estatal A percepção da Lei no imaginário de individuos é pressuposto para a melhor efetidade das leis.
Hans Kelsen, (Teoria pura do Direito), um herdeiro de Kant, exagerou ao depositar na coação estatal – via seus funcionários, o maior vetor de efetividade. Há um ius condentum diante do ius conditum, mormente no quadro de relações sociais tensionadas. Nelas se dão, sob a intensificação de crises contínuas e rupturas, cumulativas e sobrepostas, articuladas ou desconexas, as forma de racionalidade e a própria racionalização geral.
De todo modo é via Direito (instituído e a instituir-se) que as sociabilidades são produzidas, em contínuo processo de aperfeiçoamento da capacidade de apaziguar e compor interesses. Nessa perspectiva há nítido distanciamento de modelos utilitaristas, sejam eles fundados em Rosseau ou Lenin, ou na lex mercatória no receituário de Friedrich Hayek ou Ludwig Von Mises.
A positividade da democracia não está no consenso, mas nos conflitos que permitam consensualizar nas normas o abrigo incontornável dos reconhecimentos e das diferenças que demarcam um mundo multicultural em suas interseções interculturais e intertextuais.
Esse processo social em ebulição dá-se dentro de dado sistema democrático. Os problemas imensos da representação eleitoral devem ser enfrentados e superados nos parâmetros normativos, a partir dos quais novas alternativas poderão oxigenar ou mesmo transformar as relações entre representados e representantes.
Ocorre que essas racionalizações legadas do ideal iluminista sob o cativeiro dos modos de produção (capitalistas e coletivistas) no século XX, encontram-se confusas, sob o crivo de múltiplos contextos de uma série de deslocamentos, históricos e conceituais, indicativos de desreferencialização. Entre os quais temos a própria crise do que os modernos (e o que lhes advém) fixaram como padrões de racionalidade para as várias esferas da vida. Meios em relação a fins são confrontados com incontidos efeitos reversos e mesmo perversos, como estudado há mais de três décadas pir Raymond Boudon (Efeitos Perversos e Ordem Social), os quais por sua vez podem até produzir consequências positivas.
Num momento de blackout político, explicitado no acirramento de polarizações antigas e novas, reais ou falseadas, ideários, tradicionais ou novos flutuam sem força ordenativa alguma, insuficientes para compreender tantas anomias ou para reordenar minimamente aquelas dimensões – jurídica, econômica, cultural, afetivo-sexual, religiosa, em outros patamares, básicos para um outro modo de vida. Este pressupõe um novo modo de desenvolvimento, bem entendido. Mas como ficam teoria, intelectuais e, principalmente, os destinatários de tantos discursos grandiloqüentes, e vazios.
Teorias costumam ser lidas em conjunturas tensionadas, na literalidade ortodoxa dos seus autores e militantes ou na polissemia viralizada por filósofos de mídia e seus fãs. Nos dois casos os clássicos padecem de amputações ou torções, gerando inadequações ou mutações que os . tornam, via de regra, banalizados em substratos sem conexões com suas matrizes originais. Portanto, incapazes de provocar intermediações eficazes no sentido de exercer os espaços de formação de opinião pública. Mas esta seria possível em rítmos digitais, produzindo crítica?
Umberto Eco condenou a internet a ser um lixo cultural, na medida em que “deu voz à uma legião de imbecis”. Acordar com Eco não significa aceitar a redução absoluta das redes à um terreno infértil para a cultura, por não permitir os filtros pressupostos no mister intelectual. Há espaços para outras formas de discussão possibilitados pelas novas tecnologias da informação. Espaços reduzidos, OK. Mesmo controlados, mas existentes e disponíveis para a constituição e desenvolvimentos de Ágoras nada desprezíveis.
Se quisermos encurtar a distância entre cultura erudita e popular (retomando o sentido de vulgarização da Ilustração) em plena época cibernética, há que superar certo elitismo cultural. Vai doer aos beletristas puristas, mas as bibliotecas
O acesso às mídias digitais é de fato um lugar no qual prepondera a má informação e informação falsa, matérias primas para a guerrilha de narrativas, no estudo de Luciano Trigo (Guerra de narrativas), que inaugura, segundo os maiores entusiastas da razão cínica, a era da “pós-verdade”. Mas é também um espaço considerável para grupos interessados em estabelecer discussões sobre muitos assuntos da vida. A academia e o ensino superior em geral desenvolve ainda modestamente, no que lhes cabe, atividades de extensão diretamente de interesse popular.
Não raro a racionalização do trabalho universitário em rítmo da competição corporativa, burocratizada, dá sua colaboração para tumultuar o já opaco campo da intervenção intelectual. O que dizer do modismo, quando quadros teóricos ou modelos analíticos são
simplesmente transplantados, ou dragados nas ondas relativistas. Como entender a esfera propriamente acadêmica, com crônicas dificuldades para dar consecução ao seu projeto de autoconstituição – do campo intelectual? Doutores costumam deixa-se levar por apaixonadas disputas de torcidas no estilo Fla/Flu na qual se reduziu: a arena do político contigenciado na política menor.
Essas situações de alienação distanciam ainda mais as Universidades das demandas sociais dos mais vulneráveis. Nesse ambiente hostil verifica-se no ensino superior e nos variados graus de representação política, a simplificação generalizada na percepção e nas atitudes referentes à democracia. Ela é um meio em si, não uma finalidade, adjetivada como criticou Carlos Nelson Coutinho (A Democracia como valor Universal).
Curiosamente em situações de adversidades estonteantes, pululam os fantasmas totalitários, posturas extremadas na política e temas de moralidade religiosa. Tomo dois exemplos de extremos resuscitados negativamente, exteporaneamente (?). O da supremacia racial e do comunismo leninista. Exemplos talvez exagerados, mas portadores de novos simulacros.
O primeiro exemplo de renascimento de bestas aparece dissimuladamente embutido na seletividade e na violência das políticas anti-migratórias e da repressão à incontroláveis zonas de exclusão nas grandes cidades mundo afora, agravadas sob inúmeras diretivas neoliberais. Trump inaugurou o paradigma no qual os muros estão sendo erguidos nos territórios (geográficos, culturais, étnicos) seguido por muitas lideranças mundiais. No caso do governo Bolsonaro, arguir de um possível genocídio no caso da forma irresponsável no trato da pandemia do virus do Covid 19, ganha sentido, pois que vidas poderiam ser salvas, inequivocadamente.
São muitas as políticas de cunho racista, explicitas ou silenciosamente pensadas e executadas em todos os continentes. Políticas de segregação e abandono sistemático de um conjunto de excluídos, coincidentemente formados por estrangeiros, imigrantes, seus filhos, refugiados, clandestinos, pobres em progressão para a miserabilidade.
O segundo exemplo de bestas proscritas tem sua origem entre as fileiras do velho comunismo marxista-leninista, um bom pseudônimo para stalinismo e outros ismos irmanados no mantra da ditadura do proletariado. Muito já se escreveu sobre, entre nós Leandro Konder (A derrota da dialética). A certificação do exaurimento do sistema democrático ocidental induz certa esquerda tradicionalista a reascender a chama do elogio a Stálin, aos socialismos reais, a Trotsky, Mao, Fidel. Afinal, pensam seus seguidores, a democracia é e sempre foi burguesa…
Voltando à crítica à ultradireita e ao seu ideal saneador. Sabe-se que a raça humana é única e na prática, uma riqueza de etnias. No nazismo, mas não somente nele, confirmou-se no genocídio o absurdo da pureza racial. O descaso pelos povos indígenas e a permissão de pilhagem de seus territórios é uma maneira de expansão de espaços vitais em detrimento do direito à vida dos seus primeiros seres.
Com relação a um Lenin saído da cova, sabe-se que o comunismo é uma utopia igualitária, válida enquanto persistirem as desigualdades e iniquidades outras.
Mas o ideal emancipatório teve no marxismo uma apropriação concreta redutora, por força do leninismo que permitiu aos socialismos reais o terror dos gúlaks. Algo deve ser inventado entre esses dois modelos políticos inspirados em leituras restritivas do mercado e do socialismo. A democracia desapareceu em ambas as experiências.
É hora de reimaginar conceitos e abstratos mais conectados com um mundo fragmentado em todas as suas instâncias sociais.
Felizmente milhares de indivíduos e grupos tentam pensar outros mercados, como Steven Pinker (Mercados radicais); novas utopias, caso de Rutner Bregman (Utopia para realistas); bases para a reconstrução do mundo. Também marxistas heterodoxos sonharam um mundo melhor. Immanuel Wallerstein (Após o liberalismo); Jacques Bidet (L’État-Monde. Libéralisme, socialisme e communisme à l’échelle globale) e o nosso José Arthur Gianotti (Política).
Apropriando em parte Gramsci talvez possamos admitir que as velhas estruturas sociais e mentais ainda não morreram, e as sementes do novo ainda não germinaram. Elas existem posto que o Homem acumula habilidades para tentar compreender e agir diante dos problemas que ele mesmo cem criando.
Basta admitir que ao meio do caos social e do pensamento conceitos devem se afastar dos mecanicismos causalistas e voluntarismos intencionalistas. Voltar a juntar as peças de um enorme quebra-cabeças é urgente para reconstruir de forma aproximada outro padrão de unidade relacional ao conjunto de vivências fragmentadas a partir do que sobrou no estilhaçamento dos grandes discursos e das grandes aventuras liberais e socialistas Trata-se de uma maneira mais modesta de reordenação entre inteligência e bom senso, entre vida e meio ambiente, de algum modo engolfados em um modelo desenvolvimento social aquém da extraordinária acumulação de conhecimento, capital e tecnologia.