O mundo, realidade e representação (Fragmentos para uma nova ordenação)

Os tempos deste século XXI parecem cada vez mais loucos, remetendo a filosofia àquela imagem de biruta de aeroporto. A interação entre pensamento e realidade enfrenta evidentes curtos-circuitos. O que fazer?

Louis Althusser - Foto Domínio Público

Um filósofo que encantou mundialmente os meios marxistas, na academia e nos movimentos sociais, Louis Althusser, afirmava que a luta de classes poderia ser verificada, de forma mais sofisticada, na filosofia. Verdade ou delírio?

Apocalipse

Os tempos deste século XXI parecem cada vez mais loucos, remetendo a filosofia àquela imagem de biruta de aeroporto. A interação entre pensamento e realidade enfrenta evidentes curtos-circuitos. O que fazer? Melhor, como compreender para melhor agir? Urge refletir sobre equívocos e cacoetes nas maneiras de pensar anunciadores do apocalipse ou da redenção. Uma tarefa para filósofos e não filósofos.

Qual o pressuposto colocado no primeiro parágrafo? É no plano das ideias mais complexas dos abstratos que se refletem, na história, as representações da conflitualidade travada a partir do antagonismo entre as classes fundamentais. Um ponto de partida evidentemente questionável, mas instigante, inspirado em certa leitura da ideologia, de Marx. Ideologia tomada como compreensão invertida do real (A Ideologia Alemã) ou lugar de confronto de interesses (O Dezoito Brumário).

Desdobra-se do primeiro pressuposto um segundo, também questionável, endossado de Lenin a Gramsci, e vívido ainda hoje entre marxistas convictos mais ortodoxos, a de que a filosofia da práxis (na expressão do pensador sardo) se situa no lugar mais alto do mirante do saber. Vale dizer, capaz de vislumbrar gêneses e horizontes da humanidade na exata medida de nada ter a esconder ou justificar na sociedade de privilégios na qual ela -a classe trabalhadora, é subalterna. Será?

Michael Löwy, pesquisador marxista

Um marxista insuspeito, Micharl Löwy (As Aventuras de Marx contra o Barão de Münchhausen) denunciou as armadilhas dessa pretensa superioridade do pensamento marxista quando acrítico e contaminado pelo espectro cientificista do positivismo do qual não escaparam Marx e boa parte do marxismo.

O conhecimento das trágicas experiências  sobre as nomenclaturas dos socialismos reais no formato sedutor da  ditadura do proletariado é uma comprovação desse distanciamento entre os donos do poder e as massas. Mas há os militantes cheios de certezas de estar do lado certo da história. Diante da evidência do estado de direito “burguês” ajoelhando-se diante da atualização da lex mercatoria, por que não tirar Lenin do túmulo?

É conhecida a passagem de Marx na qual afirma serem as condições materiais da produção social as que engendram as formas culturais, políticas, religiosas e jurídicas  (Introdução à crítica da Economia política).  Também é senso comum a maneira de Marx ver os direitos humanos como instrumentos de dominação (A questão judaica).

O filósofo Karl Marx – Foto Wikicommus

Na época de Marx, o século XIX, dois fatores conferiam maior validade para ambas as pressuposições acima citadas. O voto era censitário e as relações de produção em suas imbricações com as forças produtivas, muito menos complexas que as testemunhadas hoje, diante da prevalência canibal do Capital volátil, mesmo fictício.

A visão de Marx de democracia burguesa tinha um chão histórico preciso. Votavam os proprietários de terras e títulos e a classe trabalhadora padecia num industrialismo de alta densidade exploratória.

Direitos sociais vão surgindo com maior força na metade século XX. Agora vivenciamos graus consideráveis de integração social e situações de crescente exclusão, inclusive de deslegalização dos direitos humanos já inscritos na estatalidade. Voltemos a uma questão exemplificativa sobre a força da luta por democracia e o que é avanço e manutenção de iniquidades.

A consideração do que são dados relativos e absolutos ajuda a situar como anda o direito basilar da educação, o de alfabetização.

Analfabetos – Foto Divulgação

Em 1889 tínhamos no Brasil aproximadamente 85% de analfabetos (11.640.000 dos 13.700.000 habitantes). Em 2020 temos 11 milhões de brasileiros sem ler e escrever, ou 6,6% da população. O fato de termos mais incluídos que excluídos em termos de distribuição de direitos fundamentais não desconsidera os gigantescos problemas de sonegação da cidadania nem compactua com a tese do fim da luta de classes. Somente nos ajuda a rejeitar o cinismo do lugar comum de que os seres humanos são simplesmente irracionais e incapazes de lutar e melhorar as suas condições de vida, como situa Steven Pinker (Racionalidade. O que é. Por que parece estar em falta por que é importante), e de superar todas todas as estruturas produtivas de desigualdade, acrescento eu.

Na atualidade o processo social da luta de classes tornou-se muito mais sofisticado, envolvendo uma grande diferenciação no interior das frações constitutivas do Capital e da própria diversificação da classe trabalhadora, cada vez mais empurrada para uma identidade abstrata sem correspondência imediata com o social muito além do significante genérico – Classe Trabalhadora. Por isso revolucionários cevados no marxismo-leninismo se encontram dependurados no pincel da significativa desintermediação social. Alienados numa retórica desprovida de conexão com aqueles que pretendem representar. Da mesma maneira liberais românticos ainda aguardam a reconciliação do mercado, na forma neoliberal, com a democracia constitucional liberal.

Muitas são as desconexões que deslocam pensamentos e ações sociais, inclusive aquelas que induzem ao não pensar e agir. A organicidade pretendida pelas vanguardas liberais e socialistas tornaram-se menos evidentes, apontando para as apostas nas vias carismáticas típicas das formas populistas de intervenção política. Um novo populismo nasce, sem pressupor industrialização e avanços dos direitos humanos, posto que a tendência ultraconservadora é a da imposição da moral e costumes tradicionais, casados com um cardápio de concessões a um mercado mercenário. Muita coisa mudou.

Ralf Dahrendorf

As duas classes antagônicas eram mais claramente visíveis no século XIX, como estudado por Ralf Dahrendorf (Classe e Conflito de classes na Sociedade Industrial), entre outros.

Desde o final do século XX transformações significativas ocorrem nos blocos d’antes mais monolíticos e mais visíveis, como se podia verificar na Burguesia e no Proletariado (no modo de produção capitalista do século XVIII e parte do século XIX). Se aquelas classes sociais subordinavam-se em nível e grau ao lugar econômico, hoje são impactadas pela heteronomia de uma economia complexa em seletividade e nível de financeirização. Sob o aprimoramento crescente das dimensões “superestrurais” nos quais informação e desinformação –  em velocidade algorítimica, são oferecidas distintamente aos cidadãos,  social e culturalmente, a serviço da  aparato institucional reprodutivo e produtivo (nunca esquecer) da ordem social.

Hoje, ambas as classes fundamentais são cada vez mais segmentadas nos termos da divisão do trabalho social, por força de movimentos no mercado (formal e informal), mas também por decorrência da crescente heterogeneidade que demarca, socialmente setores altamente diversificados distribuídos nas inserções seletivas dos setores tradicionais do mundo do trabalho.

Fatos com impactos negativos no sindicalismo de moldes arcaicos, indicam um movimento social um tanto debilitado. Há muito a ‘”correia de transmissão” relacional sindicatos/partidos vem se deslegitimando em face de inúmeras indefinições de uma identidade perdida.

Indefinições também se avolumam devido à novidade do agigantamento dos setores “improdutivos” dos serviços, das novas tecnologias da informação, do consumo cultural multifacetário e de novas demandas sociais, enfim. Essas mudanças implicam tanto em novas formas como em novos conteúdos culturais de recepção, percepção e impacto nas lutas sociais. Tudo dificultando uma reconfiguração do que semanticamente possa, legitimamente ter-se tanto como vanguardas (do progresso) como Classe Trabalhadora. Analistas têm acentuado um fato curioso: a reapropriação do discurso contra a ordem, tipicamente das esquerdas, por parte da extrema direita. Isso foi e é possível em tempos extremados de insegurança generalizada (na qual há parcelas de responsabilidade das esquerdas…) e de descrença nas instituições.

Jair Bolsonaro – Foto Orlando Brito

Bolsonaro é um legítimo exemplo desse oportunismo e capacidade ultraliberal de sequestro das bandeiras progressistas da mudança em momento de crises e desgaste da democracia liberal. Uma alienação que faz do avesso uma narrativa absurda para o saneamento nacional.

Entretanto, à alienação muito mais elaborada pela desinformação não parece corresponder, na mesma velocidade virtual, uma atualização de sentidos plurais capazes de permitir uma unidade de organização mínima apta a produzir mudanças estruturais. Intelectuais de campos políticos diferentes parecem insistir num discurso descolado. Nesse sentido há uma diluição da linguagem do político sem a qual a questão da democracia tende a ser simplificada num discurso moralista em defesa da Lei e da Ordem.

Comportamentos nas hostes d’antes progressistas (da direita e da esquerda) obstam e retardam uma comunicação efetiva e legítima entre vanguardas e retaguardas. Ambas vivem uma confusão em suas identidades, propiciando um reforço ao vazio político na qual surfa a ultradireita. Mas há outras cisões.

Diversidade – Foto Orlando Brito

As lutas por reconhecimentos de grupos pós-modernos, a exemplo do LGBTQIA+, expressam esse multiculturalismo, redefinindo as expressões da representação política de interesses de grupos particulares. Também as lides por interesses difusos demarcam um distanciamento das análises estritamente nos moldes classistas. O fato não justifica o abandono das pautas mais gerais, mas diz muito sobre o seu estado de calamidade.

A Metamorfose do Mundo: novos conceitos para um novo mundo

Ao lado das pressões transversais e supraclasses sociais, as relações de produção em tempos metamórficos, como o quer Ulrich Beck (A Metamorfose do Mundo: novos conceitos para um novo mundo), ou de indefinições amplas, segundo expressam desdobramentos sociais e culturais da luta de classes no interior de cada classe. Essas situações acirram a conflituosidade em termos gerais na medida em que a identidade abstrata quebra e tumultua as conexões culturais, obstando a ocorrência das condições de classe em si e a decorrente reorganização das demandas em suas singularidades e confluências. No conjunto esse quadro torna muito mais árdua a tarefa de pertencimento a uma consciência de uma mesma classe social.

O fenômeno das “classes médias” onde elas cresceram ou desidrataram apontam para um curioso falso ” terceiro” (incluído ou excluído) no pêndulo da distribuição antroponômica com as consequências culturais e sociais típicas de indefinições identitárias que indicam um significativo lugar na pirâmide social. Onde começa e terminam essas setores medianos?

De fato o tamanho da pequena burguesia tradicional (autônomos no processo de trabalho) e da pequena burguesia moderna (assalariada) revela uma reversão neste novo século. O domínio da segunda vai cedendo à um progressivo renascimento da primeira, por conta do desemprego e da necessidade de “criar e recriar” estratégias de sobrevivência. “Ser empresário de si próprio”  é parte de uma retórica do empreendedorismo forjado em grande medida, mas não exclusivamente, por força da força diretiva da financeirização.

São muitas as ocorrências das desarticulações no nosso mundo. Ao caos no pensamento parece corresponder um caos na inteligência. Medir as desordens no mundo pela desordem no plano das ideias parece um desafio válido, embora quase impossível no sentido de dar unidade a um mosaico multifragmentado que é o real. Trata-se de algo mais plausível e mais legítimo que a uma tarefa absolutamente impossível  (e de improbalidade absoluta) que a de  hierarquizar a qualidade analítica com medalha de ouro ao marxismo no tribunal da razão.

Resumindo. Inaceitável porque inverificável a) atender ao imperativo do caráter superior do marxismo ( ou de qualquer outra totalização absoluta); b)  vinculando-as à luta de classes ou à naturalização da relação mercado/democracia como situações conceituais e históricas sinônimas. Amas as visões equivocadas de mundo pressupõe uma unidade e a um mundo que no mais é o mesmo.

O futuro dura muito tempo

Althusser colocou fogo em dependências da Universidade onde lecionava e estrangulou sua esposa, com quem vivia há 34 anos, no dia 16 de novembro de 1980. Foi colocado em um hospício e jamais respondeu por aqueles crimes. Reagiu escrevendo um livro no hospital psiquiátrico:
“O futuro dura muito tempo” (1992) no qual registrava ser o sofrimento da esperada responsabilização penal menor diante da impronúncia (e seus silêncios) com o decreto sepulcral condenando-o à reclusão eterna. O fato não retira o poder de seus escritos, mas revela a angústia de um teólogo do iluminismo com um mundo enlouquecedor.

É o nosso mundo. Um mundo que mais do que nunca depende da filosofia e do exercício do pensamento, face à certa paralisia afetivo-cognitiva e ao claro avanço da barbárie. Mas esse exercício deve levar em conta também que: a) as ideias legadas dos últimos dois séculos também ajudaram a produzir muitas das desordens cotidianas; b) as luta por ideias para compreender e transformar o mundo,  não abrindo mão de esboços de uma unidade possível (provisória e incompleta), somente terão sentidos se produzirem pontes entre grandes e pequenos modelos, pois todos eles portam parcelas de verdade (e de inverdades), merecendo contrapontos como exercícios de intermediações capazes de superar o abismo entre inteligência e vida, entre razão e bom senso.

Uma nova ordenação do mundo parece exigir uma radical postura de comportamentos, distante dos arrogantes discursos -políticos e acadêmicos) plenos de verdades e promessas, ilusões e estelionatos intelectuais já conhecidos, mais aproximados das narrativas mais modestas, desprovidas de axiomas, dogmas, teorias totais e outras que vêm arruinando o mundo em nome da modernidade industrial  e pós-industrial.

– Edmundo Lima de Arruda Jr. é Prof. Titular aposentado da UFSC. Doutor em Sociologia do desenvolvimento na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Autor de artigos e livros na área da sociologia do Direito

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