O livro e os ricos

Sempre tive a cultura como minha causa parlamentar. As leis de incentivo à cultura, estímulo à pesquisa científica, proteção do patrimônio histórico foram iniciativas minhas, que têm quase cinquenta anos. E, Presidente da República, criei o Ministério da Cultura. A cultura vale por si mesma, mas lembro que não há potência econômica que não seja antes potência cultural.

Uma vez escrevi uma frase que pressupunha um absurdo: “Se, por uma desgraça, essa história de mercado um dia tornar o livro dispensável, ainda restará o livro de poesia, pois a poesia não precisa de mercado e salvará o livro.” Pois não é que agora, em nome do mercado, o governo quer acabar com o livro? Parece deixar de saber das imensas dificuldades por que estão passando editoras e livrarias e, apesar disso, pretende tornar o livro mais caro, isto é, inviável. Segundo seus porta-vozes, livro é coisa de rico, e para os pobres dará livros de graça (!).

Lula, janeiro de 2020 – Foto Paulo Pinto/Fotos Públicas

A Constituição veda a cobrança de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. Para driblar as restrições constitucionais à cobrança de impostos, usam sinônimos e chamam de contribuição ou taxa. E tome taxa absurda. Em 2003, consegui aprovar uma lei instituindo a Política Nacional do Livro e nela estender a imunidade tributária do livro às taxas. Lula vetou o artigo, mas assumiu o compromisso de contornar o problema e cumpriu o prometido. No ano seguinte, anunciou a desoneração de todas as contribuições e taxas para o livro nacional e o estrangeiro.

Agora, na reforma tributária, o governo está atrás de receitas. A carga tributária, que deixei em 24% do PIB, já passou dos 35%, e o Ministro da Economia quer mais. Acha bom tirar do livro para salvar o País! Pretexto: “Livro não é importante para o povo.” Eles nunca devem ter ido a uma feira de livros, cheia de povo jovem e povo povo e povo de todo jeito.

O livro é um bem de consumo essencial. É um dado histórico. Com a invenção de Gutemberg, explodiu a produção de livros. Foram eles os responsáveis pela expansão das universidades e da educação, pela fixação de línguas, pelos Descobrimentos, pelo Renascimento, pela pesquisa científica, pelas revoluções políticas — entre elas a criação do Estado e da democracia representativa.

Bill Gates

O livro nunca acabará, porque ele é a maior das descobertas tecnológicas: cai e não quebra, não precisa de energia, de ligar e desligar. Pode ser levado para qualquer lugar, banheiro ou cama. O livro é o melhor amigo. O livro tem tudo, da poesia à informática, passando pelos livros de economia, inclusive os que o Ministro disse que leu em inglês, no original. O Bill Gates, criador da Microsoft, disse sobre o livro que a internet só existe porque os que a criaram passaram pelo livro.

Recordo um refrão que, se não me falha a memória, está no Dom Quixote: “Os livros fazem muitos sábios, mas poucos ricos.” Com a reforma haverá ricos sábios ou sábios ricos?

— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras. Artigo publicado também em O Estado Maranhão

 

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