Por cem mil mortos
“O Grito”, obra do artista norueguês Edvard Munch, é considerado um dos quadros mais famosos do mundo. Representante do expressionismo no campo das artes plásticas, corrente artística que tentava atingir maior realismo através do exagero das cores e formas, a imagem ganhou notoriedade no mundo todo, sendo que uma de suas quatro versões foi até alvo de furto nos anos 1990.
A icônica tela nos apresenta uma pessoa com o rosto deformado, amparado em duas mãos, olhando em nossa direção e representa, magistralmente, a angústia, o horror represado, o pânico, a dor.
As cores que emanam da tela parecem gritar e se entrelaçam, em sintonia nervosa, com os traços que emolduram o rosto disforme, expressando, em cores e formas, a imagem do espanto absoluto.
Que imagem representaria melhor nosso país, o nosso povo, nesse momento em que alcançamos a marca espantosa de 100 mil mortos em decorrência da covid-19?
Falemos de novo o número – cem mil mortos – para que o evento não seja banalizado ou esquecido.
Esse número merece ser repetido inúmeras vezes em nossas mentes e em nossos corações para que não nos esqueçamos nunca deste ano, “o primeiro ano do resto de nossas vidas”, “o ano que vivemos em perigo”, em lembrança ácida e triste dos sugestivos títulos de filmes que nos envolveram décadas atrás, com histórias não tão ácidas, mas que representavam tempos de ruptura e desassossego.
Ainda na linha da representação, considero oportuno trazer à lembrança as famosas caixas de “Brillo Box” apresentadas pelo irreverente artista Andy Warhol no decorrer dos anos 50 do século passado. Representante da denominada Pop Art, Warhol tentava transferir para o mundo pictórico, a imagem repetida de um objeto comum de consumo de seu tempo. Com sua atitude, sabemos que Andy Warhol provocou uma enorme ruptura no campo das artes.
Warhol viveu no momento em que explodia o consumo de massa e tentava refletir e captar, através da arte, os efeitos causados pela propaganda, que fisgava a psicologia do consumidor, fazendo-o introjetar uma imagem, pela repetição infinita, e incutir nele o desejo de compra.
Mas qual seria a relação das famosas “Brillo Box” de Warhol com os tempos atuais em nosso país?
É o medo que a imagem repetida das centenas de mortos diários finde por banalizar o horror. É o temor de que passemos a ver como normais as imagens dos noticiários diários, e que isso seja normalizado dentro de nós, sufocando e abafando o nosso grito, a nossa indignação.
Entre as “Brillo Box” de Warhol e “O Grito” de Munch talvez fique, neste momento, com o último.
Gritemos a angústia de estarmos presos em casa, impotentes e em desamparo.
Sejamos também o grito dos doentes solitários e isolados em hospitais.
Sejamos o grito dos profissionais de saúde, sem estrutura para salvar as vidas que precisam.
Gritemos o desespero de milhares de familiares que perderam entes queridos.
Gritemos e repudiemos, por fim, a indiferença de um governante, que trata os nossos mortos como caixas de “Brillo Box”, como objetos impessoais e repetidos, mencionados em uma “live” que mais parecia uma reunião de condomínio.
Pensando bem, é hora de unir forças e conciliar Munch e Warhol.
O mestre do expressionismo revelou sentimentos reais e urgentes através de linhas e cores.
O artista pop conferiu nova significação a um objeto do cotidiano, elevando-o à categoria de arte.
Talvez o que precisemos é potencializar o nosso grito e ressignificar a vida.
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada