Em um dos briefings diários do Ministério da Saúde sobre a pandemia do coronavírus, o ministro Luiz Henrique Mandetta manifestou certa perplexidade pelo fato de a produção mundial de equipamentos e insumos hospitalares estar concentrada, hoje em dia, na China. Posteriormente, expressou sua preocupação com o fato de o Brasil, possivelmente, estar sendo passado para trás, por fornecedores chineses, na fila do atendimento à demanda internacional por mercadorias imprescindíveis no tratamento emergencial da Covid-19.
Quanto à primeira questão, não deixa de ser intrigante ver um político que defende o livre mercado, inclusive na prestação de serviços na área da saúde, não perceber que o capital desloca-se, mundo afora, para os territórios em que melhor possa se reproduzir, ou seja, onde possa obter maiores lucros.
A China não se tornou a fábrica do mundo por acaso.
Em primeiro lugar, seus governantes nunca desdenharam a teoria econômica, segundo a qual o que gera riqueza é o trabalho que modifica a natureza; e que essa riqueza se expressa, essencialmente, em mercadorias tangíveis. Em segundo lugar, a República Popular da China, como agente normativo e regulador da atividade econômica, não acredita em virtudes autorregulatórias do mercado e tem o planejamento como determinante para o setor público e para o setor privado. Em terceiro lugar, os chineses tratam a educação, a pesquisa científica e a inovação como coisas sérias.
A classe trabalhadora chinesa está na vanguarda da capacitação tecnológica para a produção de bens qualificadíssimos, nos quais a agregação de valor é admirável. E como esta classe é politicamente controlada por um regime autoritário, os resultados, em termos de produtividade, são notáveis.
Em consequência, o Império do Meio se destaca, atualmente, não apenas pela notável produção de mercadorias tangíveis, mas, também, pela imbricação de criação de mercadorias intangíveis e de prestação de serviços altamente sofisticados. A sua hegemonia em torno do 5G, no setor de telemática, que tanto incomoda os EUA, é o melhor exemplo disso.
A China tornou-se “cachorro grande”. Mas, que fique bem claro: não é socialista. Pratica o capitalismo de Estado. E está mostrando que faz negócios, conforme as regras do jogo no sistema capitalista: leva quem paga mais.
Dado o forte controle do Estado sobre a economia, se fôssemos amigos dos chineses, provavelmente não estaríamos, nessa altura dos acontecimentos, sendo passados para trás, na aquisição de respiradores, máscaras, luvas, toucas e aventais, a despeito de nosso raquítico poder econômico.
A resposta para a segunda questão, que vem dando dor de cabeça ao ministro da Saúde, pode ser encontrada na Ordem do Dia do ministro da Defesa, em comemoração à ruptura institucional que ocorreu no dia 31 de março de 1964. Ali se lê que o regime político que se instaurou naquela data foi “um marco na democracia”.
Três dias após o assentamento desse “marco na democracia”, uma comissão chinesa, composta por nove funcionários do governo de Pequim, foi presa no Rio de Janeiro e seus membros acusados de subversão e terrorismo. Tratava-se em uma delegação comercial, que se encontrava oficialmente no Brasil, desde 1961, a convite do então presidente Jânio Quadros, para promover as relações comerciais entre o Brasil e a China, países que não tinham laços diplomáticos.
Foram covardemente humilhados, achincalhados pela imprensa, barbaramente torturados na prisão. Confiscaram-lhes US$ 50 mil dólares, cuja destinação até hoje se ignora. Num processo absurdo, recheado de provas forjadas, foram condenados pela Justiça Militar a dez anos de reclusão.
Nada, absolutamente nada comprovava as acusações que lhes eram imputadas. A bravura indomável do defensor desses chineses, o advogado Sobral Pinto – notório anticomunista, que atuou sem nada cobrar − levou a que esses “terroristas subversivos” amarelos fossem expulsos do país após um ano de prisão. Retornando à China, os membros da delegação foram recebidos como heróis e passaram a ser conhecidos como “os nove corações vermelhos”.
O Brasil nunca pediu desculpas à China por essa ignomínia; nunca procurou reparar os danos causados a pessoas inocentes; nunca devolveu um centavo do dinheiro que confiscou. O advogado Danillo Santos, que prestava assessoria jurídica em assuntos comerciais e administrativos à delegação chinesa e que, também, foi indevidamente preso à época dos acontecimentos, aprendeu, no convívio por três anos com seus clientes, que, na cultura chinesa “primeiro vem a amizade, depois vêm os negócios”.
Já a advogada Eny Miranda, que era estagiária no escritório de Sobral Pinto, em 1964, e acompanhou o processo dos chineses, afirma: “A China nunca se esqueceu disso. E o Brasil faz de conta que a China não se importa mais com isso”. Mas os chineses nunca se esquecem e preferem a amizade aos negócios.
Alguém deveria contar essa história ao ministro Luiz Henrique Mandetta.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG