A política brasileira não se limita aos desatinos do presidente da República, às derrapadas de seu ministro da Justiça, aos labirintos da equipe econômica ou à sede de poder dos governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo. Há novidade interessante no ar: os consórcios públicos, formalizados ou não, constituídos por Estados federados nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil.
Em alguns casos, a atuação cooperada se imbrica de forma a desconsiderar não só a divisão administrativa do País em regiões como, até mesmo, as clivagens político-partidárias. Alguém poderia, por exemplo, imaginar Flávio Dino, governador do Maranhão, filiado ao PCdoB, trabalhando em conjunto com Ronaldo Caiado, do DEM, ou Antonio Denarium, do PSL, governador do Estado de Roraima?
Pois, acredite: sim, isso é possível! O Estado do Maranhão acerta-se com Estados nordestinos em torno de um projeto de desenvolvimento para o Nordeste; compõe-se com outros, no âmbito da Amazônia Legal, em defesa da preservação do bioma amazônico e do desenvolvimento sustentável no território que lhe corresponde; e, finalmente, ajusta-se com Estados do Centro-Oeste, mais o Distrito Federal, para racionalizar a compra de insumos hospitalares para as instalações do SUS sob suas respectivas responsabilidades.
A previsão desse tipo de articulação conhecida como consórcio público foi inserida no artigo 241 da Constituição Federal, por meio da Reforma Administrativa de 1998, de iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso (Emenda Constitucional número 19, de 1998). De acordo com o referido dispositivo constitucional, leis autorizativas dos entes político-administrativos envolvidos poderiam facultar a “gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.
No âmbito da União, a norma que trata da matéria é a Lei número 11.107, de 2005, fruto de especial empenho do então deputado federal Rafael Guerra (PSDB-MG). O parlamentar tucano trazia na bagagem, ao apresentar o projeto de lei, sua experiência como secretário de Saúde do Estado de Minas Gerais, ocasião em que, frente à escassez de recursos, organizou parcerias entre o Estado e municípios mineiros para racionalização dos meios de prestação de serviços de saúde pública. Não deixa de ser instigante o fato de uma proposição oriunda do PSDB ter sido sancionada por um presidente da República petista: Luiz Inácio Lula da Silva.
Agora, parece que os consórcios públicos, que, até então, estavam se limitando a iniciativas pontuais, sobretudo na área da saúde, estão deslanchando, e de maneira ampla. Esse fenômeno faz transparecer, na prática, a inércia da União na busca de soluções, no curto prazo, para graves problemas regionais. Em que pese o discurso eleitoral do presidente da República de “mais Brasil e menos Brasília”, o fato é que o Brasil profundo se movimenta por si para mitigar suas dificuldades. A necessidade faz o sapo pular.
Mas essas articulações acabam trazendo problemas para uma Brasília tragada pela paralisia decisória. Problemas, até mesmo, de ordem geopolítica.
Um exemplo. A China tem se apresentado como parceira nos esforços dos governadores nordestinos para incrementar o desenvolvimento regional, especialmente na área de infraestrutura, com destaque para seus bens e serviços da mais avançada tecnologia digital. Um dos instrumentos dessa parceria é a empresa Huawei, que se encontra no centro da disputa por hegemonia da economia informatizada entre Washington e Pequim.
Trump já fez chegar a Bolsonaro suas queixas sobre a presença dos chineses no Nordeste, mesmo depois de ganhar de bandeja a base de lançamentos de foguetes situada em Alcântara, no Maranhão. Estaria o Palácio do Planalto disposto a acirrar contenciosos com o Império do Meio, principal destino de nossas exportações?
Ainda à guisa de ilustração. No caso do enfrentamento da questão de desmatamento e queimadas na Amazônia, os governadores de Estados em que se verifica a presença da Hileia já se reuniram com embaixadores da Alemanha e da Noruega, acompanhados estes dos representantes da França e do Reino Unido, para retomar o fluxo de repasses do Fundo Amazônico e para receber novos aportes de países europeus.
Querem combinar tudo diretamente, por meio de consórcio, à revelia, se for necessário, do próprio governo federal. Como na canção de Rui Guerra e Milton Nascimento, cabe perguntar ao Itamaraty: e daí? A diplomacia vai bater o pé e vetar até a floresta virar pasto?
Esse movimento pode até levar a desdobramentos importantes no cenário interno. Uma reforma tributária que leve à racionalização dos tributos indiretos e que, ao fim e ao cabo, adote um imposto de valor agregado único, incidente sobre o consumo e cobrado no destino, pode ser impulsionada pela articulação desses governadores.
Passaríamos de um federalismo competitivo para um federalismo cooperativo, em que o papel de arbitragem do Senado, inclusive, passaria a ser nevrálgico para a definição de critérios de repartição dos recursos de um tributo que, obviamente, em tais circunstâncias, seria federal. Não se trata de jabuticaba. É o que, por exemplo, pauta a atuação do Bundesrat, ou Conselho Federal, na Alemanha, que seria o equivalente à nossa instituição senatorial, no rateio do IVA alemão (Mehrwertsteuer).
Essa concertação, inclusive, não deixaria de contemplar os municípios. A perda de receita municipal advinda do ISS, por sua eventual inclusão no IVA, poderia ser compensada com a transferência aos entes municipais do imposto estadual de transmissão causa mortis e por doações. Praticando-se, evidentemente, a alíquota máxima permitida, de 8%, já fixada pelo Senado Federal, mas que vem sendo desdenhada pelos Estados, por inadmissível “zelo”, decorrente de razões políticas, evidentemente, em não tributar a propriedade.
Enfim, os consórcios públicos apontam para a efetividade de um imperativo que, em tempo de polarizações irracionais, torna as ações humanas mais sublimes: é preciso conversar com quem é diferente, ouvir as razões do outro e, o que é bom para a legitimação do poder político, construir consensos. Diferentemente dos versos de Bandeira, a saparia dos governadores não grita, não fala pelas tripas. Como o sapo-cururu, no perau profundo e solitário, fugidos ao mundo, sem glória e sem fé, governadores fazem Política com “P” maiúsculo.
* Thales Chagas Machado Coelho é mestre em Direito Constitucional UFMG, professor de Pós-Graduação em Direito Eleitoral no Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN)