Vitória do sistema BRICS? Gol contra da esquerda? Gol de bicicleta, com a mão, do chanceler Ernesto Araújo? A verdade é que os dois diplomatas gaúchos estão resplandecendo no terceiro andar do Palácio do Planalto. A vacina do Ernesto e a carta atribuída a Nestor Forster, embaixador do Brasil nos EUA, assinada pelo presidente e enviada ao novo guia dos povos estão a provocar gargalhadas no entorno do presidente.
Curiosamente, em vez de responder com uma bofetada, no seu estilo, o belicoso Jair Bolsonaro preferiu o tapa de luva: a vacina indiana está aí para quem quiser ver, enquanto no cenário pan-americano parabeniza Joe Biden pela posse como presidente dos EUA e lhe oferece apoio na luta histórica pela democracia, que sempre foi o apanágio de todos os presidentes dos Estados Unidos. E aquelas pendengas (voto contra Índia na OMC e apoio incondicional a Donald Trump)? Nada disso existiu. A carta ao novo mandatário americano reafirma tudo o que está nos antigos documentos oficiais assinados pelo País no passado, nenhum deles oficialmente revogado. O Brasil continua no Acordo de Paris, apoia o multilateralismo (refugando o globalismo).
Os termos da carta, apaziguadora – lágrima de crocodilo, segundo os adversários mais empedernidos -, foi obra do até então mais desastrado embaixador brasileiro nos Estados Unidos, o gaúcho Nestor Forster, que aconselhara o presidente a não reconhecer o resultado eleitoral, a não cumprimentar Biden pela vitória e todas as demais trapalhadas. Em seguida, como se nada tivesse acontecido deu o dito por não dito e se desdisse, é verdade que num momento apropriado (quando o novo presidente dos EEUU subia os degraus do Capitólio para vestir a faixa, mandou a tal carta cheia de boa-vontade. Como vale o que está escrito, na linguagem do malandro carioca, seria por aí que o Departamento de Estado deve considerar o Brasil daqui por diante, diz o embaixador, na carta que deu para o seu presidente assinar, pois tudo o que Bolsonaro dissera naqueles temas polêmicos foram apenas palavras ao vento. Nada se realizou, pois o Brasil continua a estar onde sempre esteve, como dia o sábio mineiro Otto Lara Resende).
A gambeta das vacinas
O caso das vacinas foi mais espetacular, pois o ministro Ernesto Araújo, qual fênix, diria o Conselheiro Acácio (personagem emblemático de Eça de Queiroz), renasce das cinzas sob as asas do Airbus da Emirates. Enquanto seus detratores se riam olhando o A330neo que faria o voo mais longo da história da aviação brasileira parado no Aeroporto de Guararapes, no Recife, aguardando a autorização para sobrevoar os mares nunca dantes navegados, o Oceano Atlântico e o Indico, reproduzindo, pelo ar, a rota de Pedro Alvares Cabral. Pois Ernesto, o outro gaúcho desastrado da diplomacia, tirava o cavalinho da chuva ao abrir as caixas das vacinas no Aeroporto de Galeão e, frente aos microfones, degustou a decepção de seus adversários, que já o viam na porta da rua.
Um dia antes, no pior momento, bombardeado de todos os lados (oposição, mídia, cientistas, povo de Manaus, público em geral), Bolsonaro disse que ele ficaria. Estavam com a faca e o queijo escondidos debaixo do pano.
O noticiário adverso dizia que o Brasil sequer constava da lista de países a receber a vacina indiana. Qual nada! O avião já estava carregado em Delhi, ponto a fazer, no sentido contrário, o caminho das índias. De fato, Ernesto Araújo se adiantou anunciando a vinda das vacinas, na semana anterior, pois a pressão era muito grande. O adiamento não seria dramático em momento menos tenso. Ele arriscou, o que, na realidade, é uma característica desse outro aluno da ágora remota do professor Olavo de Carvalho, tal qual Forster.
Lombo duro
A questão indiana, analisada diplomaticamente, é transparente. Não dá para entender como a oposição apostou nesse fracasso, quando tudo indicava uma solução favorável ao Brasil. Politicamente, atendendo Bolsonaro, um mandatário isolado no cenário internacional, o premier indiano Narendra Damodardas Modi, também malfalado por suas atitudes racistas (indianos contra árabes) e antimuçulmanas, apoia seu parceiro na direita internacional e, de quebra, dá um tapa de luva em sua rival China, pelo que se diz também sem base real, mas é o que vale no noticiário, que está fazendo doce com os insumos do Butantã.
A maldita vacina chinesa… (“bem que eu alertei”, poderia dizer o presidente brasileiro, que, contudo, diante da problemática que ele mesmo levantou, melhor ficar quieto por enquanto, pois os preparados estão para chegar). Mas não: com o lombo curtido de tanto apanhar, Ernesto Araújo ficou quietinho enquanto se espalhava um vazamento incompleto de que o Brasil não seria contemplado com o primeiro embarque das exportações indianas da vacina inglesa. Na verdade, não havia tal lista, mas sabia-se que outros países receberiam o produto. O Brasil não aparecia naquela lista incompleta porque era o freguês preferencial, que pagou adiantado e ainda, para o governo indiano, trazia aquela vantagem política de deixar a China falando sozinha.
Embora o volume da remessa da vacina indiana seja desprezível diante do suprimento chinês, serviu para passar a mão no cós das calças do presidente Xi Jinping, sob olhar divertido do outro filhote do ex-presidente Donald Trump, o presidente russo Vladimir Putin. Todos mui amigos brindando na sala dos BRICS.
Não se pode esquecer que esse subgrupo foi algo decisivo neste momento. Enquanto não se sabe concretamente a que vem Joe Biden, é prudente fortalecer as trincheiras, o que vale para russos, chineses e indianos, cada qual com sua área de potencial atrito com os Estados Unidos. O aliado sul-americano é uma boa desculpa para mostrar ao mundo a unidade dos países emergentes. Araújo faturou em cima dessa coincidência e sai de cabeça erguida, no seu entender, pois a carta aos americanos é um documento oficial de intensões políticas e o caso das vacinas constitui uma espécie de desmentido formal de seus propósitos genocidas verberados por seus detratores mundo afora.
Enquanto isto, internamente no Brasil, Bolsonaro vai se fortalecendo politicamente, enquanto as atenções ainda estão concentradas nas vacinas asiáticas. Caso vença a sucessão na Câmara dos Deputados (no Senado, a vitória de Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais, parece tranquila, neste momento – embora em política tudo pode mudar, como o formato das nuvens no céu), o presidente melhora sua posição no cenário catastrófico da pandemia, com a vacina indiana. Isto é inegável.
Entretanto, todo dia cai uma nova bomba no seu colo. Seguindo a teoria dos limões e limonadas, Bolsonaro trabalha para assumir o posto abandonado por seu amigo Donald Trump, de chefe da direita internacional, justamente brandindo as teses e os mais contundentes slogans politicamente incorretos. Com isto, atrai o fogo hostil sobre si e seu governo. Claro, o Brasil cai no ralo junto nessa enxurrada, mas é justamente o que interessa ao movimento negacionista, que precisa de um grande país e puxar a caravana (somos o quinto território e a décima economia, ao câmbio desvalorizado atual). Então, Bolsonaro se apresenta como o Jair sem medo, o Canhão da Vila, o fracote de tiro potente quem lhe inspirou o nome. Como adverte Ilona Szabó, um Hugo Chávez ao contrário (até já recebeu oxigênio de Nicolás Maduro).
Previsão de Agualusa
Aí está o demônio, apresenta o escritor angolano José Eduardo Agualusa, crítico do presidente brasileiro, mas que já está percebendo que o tiroteio pode gerar mais balas perdidas que tiro ao alvo. Escreveu Agualusa em O Globo: “Nos tempos que correm, contudo, todo o dia nos atiram à cara um novo fim do mundo. Ora é uma estirpe inédita do coronavírus, ora uma guerra nuclear, ora um cometa Esavançando a toda a velocidade de encontro ao nosso planeta. Pelo menos no Brasil todos os cataclismos têm a mesma origem: Bolsonaro. Sugiro nomear os futuros ciclones com o nome de Bolsonaro. Ou de Jair. Ou de Messias. Messias 1, Messias 2, Messias 3. Os terremotos também. E os maremotos, os vírus mais perigosos, etc.” Aí está a Geni do Chico Buarque de Holanda. Pau nela! Até parece que o espírito de Oswaldo Aranha baixou nos gaúchos do Itamaraty.