O mundo começa a se recuperar, com alívio, de um dos maiores problemas da pandemia: o cansaço da solidão, o desgaste psicológico do isolamento. Infelizmente, aqui no Brasil, ainda vamos continuar nessa provação de ficar longe da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho, de toda a sociedade.
Há um ano, ainda no espanto com as dimensões da doença, eu lamentava o meio milhão de mortos no mundo. Hoje esse é o número no Brasil. Há mais de um milhão de pessoas em tratamento, as UTIs estão cheias, e os dezesseis milhões que já tiveram a doença ainda sofrem com ela.
Logo no começo da pandemia se pensava na dificuldade de conseguir a vacina, imaginando que logo estaríamos livres da quarentena. A vacina veio mais rápido do que o previsto, mas, como não seguimos os cientistas, ainda temos que repetir: “A única solução é evitar o contágio, com o isolamento, e, fora dele, com o uso de máscaras por todas as pessoas.”
Ao longo desse isolamento tenho escrito sobre solidão. Falei de como esse sentimento vinha misturado com medo, crescendo dentro de nós a falta dos amigos e de como não fomos feitos para isso.
Quando surgimos como espécie distinta entre os hominídeos, já éramos há muitos milhões de anos animais sociais. Cada vez mais fomos contando uns com os outros, enriquecidos pelo sentimento de solidariedade e colaboração. Juntos ficamos fortes para caçar e competentes para cultivar. Assim pudemos começar a construir habitações e com elas fazer cidades. Mais ainda, foi por e para podermos colaborar que desenvolvemos linguagens, seja numa mutação, como crê Chomsky, seja aos poucos, como na hipótese do altruísmo recíproco, que aliás se baseia na necessidade de honestidade — isto é, nada de mentira ou fake news.
Na sociedade em que nos juntamos para sobreviver, há os que se isolam, em um espiritualismo intenso. O cristianismo está povoado de eremitas e anacoretas, de São Jerônimo a Charles de Foucauld, mas Lao Zi, fundador do taoísmo, o fizera muito antes.
Mas o comum dos mortais, como nós, não sabe viver em isolamento. Por mais que professemos, como faço e pratico, o nosso amor pelo livro — ou pela música, pelos jogos solitários ou o que seja —, há o momento em que precisamos de ter o contato direto com outras pessoas, com outras almas.
Já lamentava o poeta: “Alma minha gentil, que te partiste … E viva eu cá na terra sempre triste.” Vivemos tristes o tempo todo, pois são tantos os amigos que partiram e mais ainda os amigos que não vemos, com quem não estamos, que corremos o risco de nos amofinar no desencanto do viver.
Mas temos que sacudir esse sentimento. Vencer a doença tem que ser nossa prioridade, nem pensar em sermos por ela derrotados. Sem esquecer as que ficaram pelo caminho, em nome de cada uma e de todas as quinhentas mil vítimas, temos que lutar para sobreviver, e sobreviver formando uma sociedade mais justa, em que a língua sirva para dizer a verdade e para construir a justiça social.
Estamos cansados, cansados de solidão, mas ainda temos fé. E fazendo o que sempre aconselho — vacina, máscara, isolamento —, vamos acabar com a solidão e o com o cansaço.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras (Artigo publicado também no jornal O Estado do Maranhão)