O ar que falta ao Pantanal e o que resta da nossa dignidade no mundo

Uma trágica ironia aproxima a pandemia da covid-19 e as queimadas no Pantanal. Nos dois casos, é a falta de ar que asfixia a vida. Vida que depende de nossos pulmões e do meio ambiente vai sendo dilacerada pelo negacionismo do mandatário escolhido para governar o Pais

Queimada em Mato Grosso - Foto: Saul Schramm

Desde que nos deparamos com a pandemia da Covid-19, respirar, como dizem por aí, virou em si um claro ato de resistência. Quando para além de resistir a um vírus letal é necessário cuidar do ar que se respira sem o amparo do Estado, fica evidente compreender por qual motivo temos assistido à chamada Sociedade Civil tomar frente nas ações que tentam salvar nossos biomas cobiçados em todo o mundo. Sim, pois é urgente que salvemos ao menos nossas reservas naturais de fauna, flora, águas, minérios, já que “salvar” a imagem ou a dignidade do Brasil enquanto Nação no cenário internacional se tornou uma tarefa, digamos assim, um tanto inglória. Depois do último discurso do presidente Bolsonaro na ONU então, a tarefa se torna quase “missão impossível”.

O que se passa hoje no bioma Pantanal, com áreas devastadas por queimadas nunca antes vistas e com tamanha intensidade, sem nenhum controle ou planejamento dos órgãos ambientais para que novos focos de incêndio não se repitam, é não só desolador como a certeza da personificação de uma política de Estado que não se importa com a preservação do meio ambiente como algo “natural” de Nações comprometidas com tratados internacionais. Evidencia-se, assim, um declarado incentivo ao agronegócio nacional a mostrar sua face mais cruel: a exploração do solo sem nenhuma sustentabilidade visando apenas o lucro e a falta de apreço pela vida de espécies animais, além de um evidente desprezo pelos povos originários do Brasil que habitam terras que cruzam latifúndios, muitas vezes, improdutivos.

Não somos nós que estamos a dizer, mas investigações da Polícia Federal comprovam que os incêndios no Pantanal foram provocados pela mão impiedosa do homem. Homem branco, que em séculos passados foi conhecido como senhor feudal e em cenários não tão longínquos, como senhor de escravos. Este, mesmo com o avanço do tempo, continua a tratar a terra, os animais e as pessoas como seus “pertences”, tal qual os móveis da Casa Grande.

Incêndio florestal na Amazônia – Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace

Os homens brancos fazendeiros sempre estiveram à espreita, tal qual raposa vigiando o galinheiro, mas tinham sua sanha controlada pelos órgãos ambientais estatais, quando estes podiam cumprir adequadamente o papel previsto pela Constituição. Mas em um cenário que, por um lado, se vê instituições de Estado sendo impedidas de atuar – principalmente pelos cortes de verba para combate a incêndios perpetrados pelo Ministério do Meio Ambiente -, e, de outro, um incentivo de forma explícita por governantes ao avanço indiscriminado sobre nossos biomas sob o pretexto de desenvolvimento econômico, os velhos coronéis deste país afora se sentiram à vontade para rasgar leis e a própria Constituição, que há tempos sabemos ser desrespeitada quando se trata de preservação do meio ambiente.

Some-se a este incentivo uma pitada da “paranoia delirante” de Bolsonaro no discurso oferecido à ONU no início da semana passada, onde culpabilizou indígenas, quilombolas e ambientalistas pelas queimadas, ao mesmo tempo em que sua “lábia negacionista” prometeu levar embaixadores para sobrevoar a fumaça que paira sobre o Pantanal e já chega em outras regiões do país. Nem com a fumaça diante dos seus olhos, fazendo com que o avião presidencial arremetesse, o mandatário maior do Brasil deixa de fazer suas piadas de mau gosto e declara com deboche: Nunca se fez tanto, o Brasil está de parabéns por preservar o meio ambiente!

Assim como é generalizado o negacionismo deste governo, já que dia a dia também assistimos o mesmo discurso em relação às ações de combate à Covid-19, vai se repetindo à exaustão ou se negando à exaustão, que tanto opositores quanto defensores desta política com ares claros de barbárie passam a se acostumar com o elevado número de mortes diárias pela doença e também com a fumaça que torna cidades como Cuiabá – calorenta e seca -, praticamente inóspita. Em tempos de pós-verdade, a prática do “negar até a morte” terá de ser estudada a fundo pelos historiadores e cientistas políticos.

Pelo direito de respirar

É interessante pensar que, tanto em relação às queimadas quanto em relação à pandemia, o que está em jogo aqui é o nosso direito de respirar. De um lado, o direito de não respirar fuligem resultantes das queimadas, de outro, o direito a um sistema de saúde que nos resguarde de um vírus ou que, se inevitável for, possamos ter acesso a respiradores, equipamentos que se tornaram símbolos deste ano de 2020. O mesmo 2020 em que um homem negro é morto por policiais em frente às câmeras aos gritos de “não consigo respirar”, trazendo à tona mais uma vez um racismo de Estado que nunca deixou de operar nos Estados Unidos e tampouco no Brasil. Aqui, queimadas e Covid-19 também apontam para este racismo histórico e institucionalizado: são os mais pobres e vulnerabilizados que estão sendo mais atingidos nos dois casos.

As queimadas estão colocando em risco grupos indígenas inteiros, como os Guató do Pantanal, que perderam 83% de sua área na Terra Indígena Baía dos Guatós, em Barão de Melgaço, no estado do Mato Grosso, área esta contestada pelos fazendeiros da região. Assim como os quilombolas da Chapada dos Guimarães, outro bioma importante e em disputa pelo agronegócio, que ardeu por semanas entre agosto e setembro. Foi da Chapada que partiu a fumaça que tanto assustou os moradores de Cuiabá nas últimas semanas, sendo que a cidade já estava recebendo a fumaça do Pantanal e da Amazônia, desde maio. Mas também nesse caso, os mais vulneráveis são os pobres da capital do Mato Grosso que, diferente da nossa elite cheia de velhos coronéis, não estão certamente encastelados com seus aparelhos de ar condicionado em casa ou no trabalho. Mas é bom lembrar que não haverá, no entanto, aparelhos capazes de filtrar toda essa fumaça, assim como o coronavírus não tem escolhido classe social para infectar.

Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro – Foto: Orlando Brito

Nessa política “à moda” Bolsonaro, o direito de respirar vai sendo negado cada vez mais, atingindo a cada dia novos grupos, e parece que, apesar de estarmos sentindo algo como um “joelho de policial” em nossos pescoços e quase a gritar “não consigo respirar”, temos uma esperança de que tudo isso não seja real, de que não vamos morrer afinal – uma vez que em relação à Covid-19, as saídas burlando o distanciamento ou o esquecimento do uso da máscara viraram rotina. Estamos perplexos, mas ao mesmo tempo esperançosos de que alguém ou algo vá impedir este Governo de nos tirar totalmente o ar. Lembremos apenas que George Floyd não teve a mesma sorte… 

Marcos Aurélio da Silva é doutor em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural, com estudos sobre relações de gênero e sexualidade, cidades, saúde e políticas públicas 

Ana Paula Barreto é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-graduada em Comunicação Legislativa pela Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis). Foi chefe de Comunicação da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República e assessora de imprensa no Senado Federal. Atualmente é responsável pelo comando da comunicação do escritório Cezar Britto & Advogados Associados

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