Sob pressão das centrais sindicais chamando mais um panelaço nacional, de deputados, senadores, e até do presidente do Supremo, Dias Toffoli, o presidente Jair Bolsonaro revogou na segunda-feira, 23, o artigo 18 da Medida Provisória 927, que previa a suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses durante a crise do coronavírus. A decisão aconteceu menos de 24 horas depois da edição da MP no domingo, de forma “sorrateira”, segundo editorial da Folha de S. Paulo.
Bolsonaro perdeu o anel para manter os dedos da levíssima mão invisível do mercado. A MP continua atropelando a Consolidação das Leis Trabalhistas, ao privilegiar as negociações individuais sobre as coletivas, por exemplo. E passa por cima da Constituição, ao permitir a redução de salários sem acordo coletivo. Já cresce o movimento para revogá-la inteiramente.
Em 40 anos de reportagem, raras vezes vi cenas de darwinismo social tão desavergonhadas como essa. Graficamente, a cena dantesca poderia ser representada assim: uma Estátua da Liberdade com o corpo de uma girafa, e a cara do ministro Paulo Guedes, a chama do Banco Santander na tocha, e a outra mão segurando a Bíblia com os dedos fazendo arminha como o presidente Bolsonaro.
A imagem pode parecer surreal como uma figura do Juízo Final do pintor holandês Hieronymus Bosch, mas a sua inspiração é absolutamente factual, como qualquer um pode comprovar folheando os jornais do domingo até esta quarta:
1) Luciano Hang, “o véio da Havan”, que associou a sua cadeia de lojas à imagem da Estátua da Liberdade como símbolo, disse à repórter Carla Araújo, do UOL, que a maneira de minimizar os efeitos da pandemia é reduzir salários, liberar o FGTS, afrouxar a política fiscal e adiar as eleições deste ano. Repetindo o mantra do presidente Bolsonaro, Hang afirmou que “o dano na economia vai ser muito maior do que na pandemia”.
2) Alexandre Guerra, sócio das lanchonetes Giraffa’s, ameaçou os trabalhadores da rede nos seguintes termos: “Você que é funcionário, que talvez esteja em casa numa boa, na tranquilidade, curtindo um pouco esse home office, esse descanso forçado, você já se deu conta que, ao invés de estar com medo de pegar esse vírus, você deveria também estar com medo de perder o emprego?”
3) Informa o Painel da Folha que nos dias que antecederam a apresentação da MP 927, o ministro Paulo Guedes “conversou com pelo menos dez representantes do setor privado, nenhum do lado dos trabalhadores. Embora o ministro tenha dito que a medida provisória padecia de um erro de redação, parlamentares e técnicos afirmam que a suspensão dos salários é o plano do governo e a compensação com dinheiro público estava pronta e foi propositalmente atrasada”.
4) Numa conversa com empregados na sexta-feira, dia 20, o presidente do Santander no Brasil, Sérgio Rial, disse que foi uma “deserção” a opção dos funcionários que trocaram o trabalho presencial pelo home office durante a calamidade do coronavírus. Nota lateral escabrosa: no dia 18 de março, morreu o presidente do conselho administrativo do Banco Santander em Portugal, António Vieira Monteiro, vítima da pneumonia do coronavírus.
5) Pastores de diversas congregações neopentecostais se insurgiram contra as ordens de fechamento dos templos para evitar aglomerações. Muitos se adaptaram, criando esquemas digitais para o pagamento do dízimo. Silas Malafaia, bolsonarista de carteirinha, presidente da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, do Rio, reagiu assim: “É muito fácil ficar com a bunda sentada na cadeira, escrevendo asneira e ficar atacando tudo… Eu vou provar que eu estou 100% certo. Nada como um dia após o outro”.
6) O presidente Bolsonaro, que dias antes foi chamado pelo Luzerner Zeitung, um jornal da Suíça, como , “o idiota mais perigoso do mundo”, voltou a minimizar a pandemia do domingo, 22. Entrevistado pelo TV Record, ele saiu-se com esta: “Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus… Espero que não venham me culpar lá na frente pela quantidade de milhões e milhões de desempregados na minha pessoa.”
Que há homens e governos sem coração, subordinados ao Kapital, não há dúvida. Mas, convenhamos, parece que a ficha só cai para os incrédulos da “gripezinha” quando a gente desenha!
Hecatombe – É óbvio que a pandemia do coronavírus provocará uma hecatombe na economia mundial, com impactos tremendos no Brasil. Segundo a diretora geral do Fundo Monetário Internacional, Kristalina Georgieva, a recessão será “tão má ou pior” do que a provocada pelo crash de 2008.
Parece claro também que serão diferenciados os efeitos da crise sobre países diferentes. Em vez de cortar salários, como pretende a dupla Bolsonaro-Guedes, o Reino Unido vai subsidiar em até 80% os rendimentos dos trabalhadores forçados ao isolamento. Ali, o “dinheiro de helicóptero” não cairá apenas na sacola dos banqueiros, embora não haja ainda previsão de como forrar o picuá dos trabalhadores informais da chamada “economia gig” (tipo o pessoal do Uber e do iFood).
Enquanto reflito sobre o provável fim do neoliberalismo e a possível reestreia do Estado do Bem Estar Social, como aconteceu depois do crash de 1929, preparo o espírito para comemorar hoje, 25 de março, o Dia de Dante Alighieri.
Vou passar o dia da quarentena escolhendo um lugar nos quintos do Inferno para alojar o presidente Bolsonaro e a sua turma (alegoricamente, pô!). Serei tão justo quanto o poeta italiano, avaliando aristotelicamente a malícia, a incontinência e a brutalidade dos atuais governantes.
Será que eu os mando para o décimo fosso do Oitavo Círculo, onde padecem os falsários e os mentirosos (espalhadores de fake news)? Ou seria melhor despachá-los para a Esfera de Antenora, a segunda do Nono Círculo do Inferno, onde ficam trancados os traidores da Pátria?