Nem só de Oscar Niemeyer vive a capital do Brasil

Invenção pernambucana da década de 1930, o cobogó acabou se tornando marca de Brasília e usado por inúmeros arquitetos em seus projetos. Foto: Acácio Pinheiro / Agência Brasília

GIZELLA RODRIGUES, DA AGÊNCIA BRASÍLIA

Quando inaugurou uma nova forma de viver em apartamento nas superquadras, Lucio Costa estabeleceu as diretrizes de como deveriam ser os prédios multifamiliares: blocos de seis pavimentos e erguidos sobre pilotis, permitindo a livre circulação de pessoas.

Oscar Niemeyer fez as curvas no concreto e deixou seus traços na grande maioria dos monumentos da nova capital. Apesar de idealizada por dois dos maiores arquitetos do país, Brasília foi desenhada a várias mãos. Há muitos outros nomes, alguns reconhecidos e outros nem tanto, que contribuíram para a riqueza arquitetônica da cidade identificada como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Mesmo tento elaborado os projetos urbanísticos de várias quadras do Plano Piloto, Lucio Costa não projetou nenhum prédio residencial. No entanto, são dele dois elementos fundamentais do projeto: a Torre de TV e a Rodoviária do Plano Piloto, marco zero da capital.

“A rodoviária é um edifício que é um mercado, um shopping e, ao mesmo tempo, é o coração urbano de Brasília, o que é muito importante para uma obra de arquitetura”, afirma o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Cláudio Queiroz.

“Para mim, a rodoviária é a obra mais importante de Brasília, não é a mais bela. É ela que articula os eixos Rodoviário [Norte-Sul] e Monumental [Leste-Oeste], que determinam o traçado do Plano Piloto”, completa o também arquiteto e professor aposentado da UnB José Carlos Córdova Coutinho. “Sem a rodoviária, Brasília não existiria.”

Já Oscar Niemeyer não projetou apenas os prédios públicos e monumentos pelos quais se tornou conhecido. Também são de sua autoria os desenhos dos primeiros prédios residenciais erguidos na capital, em blocos nas superquadras Sul 105, 106, 206, 207, 104, 304, 107, 307 e 108.

Cobogós

Em todos os edifícios residenciais projetados por Niemeyer, um elemento se repete: os cobogós, aqueles buraquinhos nas fachadas dos prédios da Asa Sul e da Asa Norte. Muitos brasilienses até podem não saber o nome, mas reconhecem esse diferencial em qualquer fotografia da cidade.

Invenção pernambucana da década de 1930, o cobogó acabou se tornando marca de Brasília e foi usado por inúmeros arquitetos em seus projetos. O nome cobogó é formado pelas iniciais dos sobrenomes de seus criadores, então donos de uma fábrica de tijolos: Amadeu Oliveira Coimbra (co), Ernest August Boeckmann (bo) e Antônio de Góis (go).

Os cobogós são blocos vazados de cimento que, além do efeito estético, permitem a circulação de ar e a entrada de luz no edifício. Em Brasília, foram usados como forma de vedar o edifício para adequá-lo às condições climáticas do país, nem frio nem quente demais.

“O ar entra e sai do outro lado”, explica Cláudio Queiroz. “Eles trazem essa possibilidade de vedar sem fechar e impedir a circulação de ar”. Segundo ele, Niemeyer usou os cobogós mais simples, pequenos, pré-fabricados e mais baratos.

Colegas de Niemeyer

Muitos dos arquitetos que vieram para Brasília nos primeiros tempos e ajudaram a erguer a capital trabalharam ao lado de Niemeyer – que, segundo Coutinho, contou com colaborações de grandes talentos da arquitetura brasileira. “Alguns mais jovens, recém-formados, outros mais velhos”, conta o professor. “Falam que Brasília é do Niemeyer, e não é. Primeiro, o projeto urbanístico é do Lucio Costa. Depois, parece que Niemeyer fez tudo sozinho, e não é verdade. É preciso fazer justiça”.

Nauro Esteves, que era chefe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) da Novacap, atuou como assessor imediato de Oscar. Nenhum outro arquiteto, depois de Niemeyer, deixou tantos riscos no quadradinho quanto ele. São de Esteves, entre outros, prédios icônicos da cidade, como o Conjunto Nacional, o Hotel Nacional, o Palácio do Buriti e a sede da Polícia Militar (no Setor Policial Sul).

Em entrevista ao Programa de História Oral, do Arquivo Público do DF, Nauro reconheceu que “nada nessa cidade” deixou de passar por suas mãos – pelo menos período entre 1956 e 1968, quando ele deixou a Novacap.

Nauro também projetou prédios residenciais, como o bloco duplo JK, da SQS 112, com a fachada revestida em esmalte azul e partilhas brancas, com 36 unidades de 138 metros quadrados.

São ainda de sua lavra projetos de edifícios nas superquadras Sul 403, 406, 407, 410, 411 e 413 e de prédios com apartamentos de três e quatro quartos na SQS 115 e na SQN 102. O bloco H da 115 Sul, projetado por Esteves, foi um dos primeiros a ser erguido na quadra.

Nauro Esteves e Niemeyer se conheceram em 1949. O primeiro estava se formando em arquitetura no Rio de Janeiro e o segundo já era um dos principais nomes do século.

Esteves se inscreveu em um concurso interno de projetos na universidade e ganhou o prêmio principal. Niemeyer estava no júri e, pouco tempo depois, contratou o pupilo para atuar no escritório.

Chegou em 1956 e fez parte da primeira caravana de arquitetos e projetistas que vieram para a nova capital, com Bernardo Sayão (engenheiro agrônomo), Niemeyer e Israel Pinheiro (político). Morou em Brasília até 2007, quando morreu.

Variedade de nomes

É nos blocos residenciais, especialmente os da Asa Sul, que aparece a variedade de nomes que contribuíram para a construção da capital. Foram muitos os arquitetos que projetaram prédios das superquadras, como Marcílio Mendes Ferreira, Hélio Uchôa, Eduardo Negri, Milton Ramos, Stéllio Seabra, Marcelo Graça Couto, Sérgio Rocha e muitos outros que deixaram, impressos em concreto, singularidades nas fachadas, nos pilotis, na distribuição interna dos espaços, nas janelas e nos basculantes.

A maioria dos brasilienses desconhece o nome do arquiteto que projetou o seu prédio, mas alguns deles aprenderam a valorizar a riqueza arquitetônica que garante qualidade de vida para o seu dia a dia.

O casal de servidores públicos Rafael, 40 anos, e Alice Della Nina, 36, morava em um apartamento de 80 metros quadrados no Guará II e passou a procurar um novo lar quando a família estava prestes a crescer.

Eles começaram procurando apartamentos em prédios com assinatura de Hélio Uchôa, que trabalhou no escritório de Lucio Costa e elaborou os projetos das SQS 105 e 305, além da sede da Petrobras em Brasília. Na 105 Sul foram projetados dez blocos, sendo oito com 288 apartamentos de três quartos e dois com 48 apartamentos de quatro quartos.

Os acabamentos dos edifícios são finos e a fachada principal é caracterizada pelas esquadrias e venezianas de madeira. Na fachada posterior, predominam os cobogós de cerâmica vermelha, lembrando os utilizados por Lucio Costa no Parque Guinle, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

Durante a procura, o casal acabou descobrindo o mineiro Marcílio Mendes Ferreira, que, como funcionário do Departamento de Engenharia da Caixa Econômica Federal encarregado de promover a construção de residências para os funcionários transferidos para a capital, surgiu como um dos principais arquitetos de Brasília. Ele fez inúmeros projetos de edifícios de apartamentos entre 1973 e 1982.

Qualidade de vida

“Eu queria uma sala assim, ampla, iluminada e arejada”, conta Alice, que mora com o marido, Rafael, no Bloco C da 210 Sul

Rafael e Alice moram em um dos 24 apartamentos de uma obra-prima projetada por Marcílio: o Bloco C da 210 Sul. Construído para os altos funcionários da Caixa Econômica Federal, o prédio se destaca pelo padrão nobre, uma forma de compensação pela mudança para a nova capital.

“Eu queria uma sala assim, ampla, iluminada e arejada”, conta Alice. “Esse prédio tem três irmãos gêmeos: o Bloco I dessa mesma quadra, o bloco C da SQS 312 e o K da 203. Chegamos a encontrar um à venda na 312, mas estava todo reformado e fora da nossa realidade. Até que achamos esse”, completa Rafael.

Os apartamentos possuem 221 metros quadrados divididos em uma ampla sala, cozinha, dependência de empregada, área de serviço, sala de jantar, lavabo, banheiro social e três quartos, sendo um deles suíte. Rafael e Alice moram no imóvel desde 2017 e fizeram questão de mantê-lo o mais original possível, com piso em madeira, azulejos da década de 1970 e louças verdes no banheiro.

A única alteração feita por eles foi na utilização da sala de jantar que fica nos fundos do apartamento. O cômodo virou a brinquedoteca da filha de dois anos e 10 meses, cujas brincadeiras são iluminadas pela luz do sol que invade o local na parte da manhã graças aos cobogós da fachada posterior do prédio.

Um tesouro preservado na 210 Sul: as portas de vidro se abrem para um pequeno jardim seguido por uma parede de cobogós que compõe a fachada principal do prédio

O tesouro fica nos ambientes da frente do apartamento vazado. As janelas da sala foram substituídas por portas de correr com pequenos módulos basculantes na parte superior. As portas de vidro se abrem para um pequeno jardim seguido por uma parede de cobogós que compõe a fachada principal do prédio.

O jardim se estende por todo o apartamento, sendo interrompido apenas por pequenas varandas que ocupam um módulo de quebra-sóis. Não há divisórias, e é possível passar da sala para o quarto por esse espaço.

O casal sabe que vive em um prédio diferenciado e valoriza o patrimônio histórico e arquitetônico onde vive. Alice conta que, além da estética, o prédio é funcional. “Os cobogós e o jardim dão conforto térmico e acústico. Basta abrir essas janelas basculantes para refrescar todo o apartamento”, diz. Segundo Rafael, os vizinhos também reconhecem a importância do edifício.

“Estamos reformando as fachadas e todo mundo se prontificou a pagar mais caro e trazer a pastilha original de São Paulo para não descaracterizar o prédio”, conta.

Marcílio também projetou os 11 blocos da SQN 206. A elaboração dos projetos e a preparação da licitação foi feita em apenas três meses. Cada prédio tem 36 apartamentos de cerca de 120 metros quadrados.

O arquiteto mineiro buscou racionalizar o processo construtivo por meio da modulação e da utilização de elementos pré-moldados, marca das obras de Oscar Niemeyer e de João Filgueiras Lima – mais conhecido como Lelé –, um dos grandes nomes da arquitetura moderna brasileira e que também deixou sua marca em Brasília.

Ambos utilizaram esse recurso para construir as primeiras edificações da Universidade de Brasília (UnB), como o Minhocão. Lelé também assina os projetos dos hospitais da Rede Sarah, em Brasília e no Brasil inteiro, do Hospital Regional de Taguatinga (HRT) e do Beijódromo, o Memorial Darcy Ribeiro, na UnB.

Os dois alegres edifícios do Setor Comercial Sul, o Morro Vermelho e o Camargo Correa, com as brises coloridas de concreto pré-moldado, também são dele, assim como os blocos da Colina, na UnB.

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