“Os séculos XIX e XX testemunharam uma crescente preocupação com a modernidade, sobretudo devido ao temor de que ‘ela’ eventualmente implodiria depois de a ‘razão’ haver esvaziado de sentido seu núcleo moral e metafísico”. A observação de Ted Mcallister, em seu texto analítico sobre as obras de Leo Strauss e Eric Voegelin, nos remete a dois momentos do discurso de Jair Bolsonaro na ONU na última segunda-feira.
“Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia…O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”, disse Bolsonaro, já no final do seu discurso repleto de inverdades, platitudes e sofismas. Não há na vida pessoal e familiar de Jair Bolsonaro nada próximo das acreditadas virtudes do humanismo e da ética cristã. Mas a crise da secularização, que se inicia com o Renascimento e a Era Moderna, tem apontados paroxismos no mundo contemporâneo. E é aí que sublinhamos a observação ligeira e o termo impróprio “cristofobia,” na fala do presidente brasileiro.
Os evangélicos pentecostais e neopentecostais se fazem notar nas grandes cidades da América Latina desde meados da década de 1980 do século XX. Hoje, constituem importante e crescente expressão religiosa no Brasil. Estão fortemente representados no Congresso, organizados nas polícias militares, nas grandes periferias do País, nos bairros de classe média e nos governos federal, estadual e municipal. Mais do que um apoio importante do governo Bolsonaro, os pentecostais sugerem uma nova realidade que se anuncia.
Ao contrário dos seus similares luteranos, metodistas, calvinistas, batistas, menonitas e presbiterianos, os pentecostais vivem sinais e manifestações do Espírito Santo. Eles se verificam no corpo dos fieis que formulam profecias, realizam curas, falam em línguas desconhecidas, promovem melhoras nas relações intrafamiliares e trazem prosperidade. Ao seu modo, os pentecostais integram as várias faces do ocidente em busca do reencantamento do mundo que fora tragado pela ciência, pela razão e pelas ideologias.
“A modernidade conduziu inelutavelmente à secularização, à desmitologização e, então, à perda do sagrado. Mas, para aqueles que estão atentos à verdade sombreada própria à espécie humana, é inegável que se assiste a uma surpreendente renascença ‘sacral’”, disse o sociólogo e renomado pós-modernista francês Michel Maffesoli no seu último livro “La nostalgie du sacré”.
A fadiga da modernidade, a mitologia do progresso, a busca incessante e inatingível por uma felicidade universal, material e absolutamente humana e somente humana, tão cara ao iluminismo e suas derivadas referências, não são uma inquietude exatamente de agora e menos ainda uma sensibilidade particular do professor Maffezoli, que, na verdade não a reivindica para si.
Em sua reflexão, como esclarece numa entrevista na Estado da Arte ( 07/07/20) , do Estadão, ele acredita que , numa perspectiva holística, podemos promover a “união da alma e do corpo, da natureza e da cultura…dar à palavra religião seu sentido essencial (religare), o que me liga ao outro, à alteridade da natureza, da comunidade e do divino”.
Bolsonaro não encanta, não reencanta, menos ainda re-sacraliza. Mas esse diálogo, para o bem ou para o mal, faz parte do seu tempo de chefe do Estado brasileiro.