Uma névoa fina e fria cobria Berlim naquele final de tarde do dia 20 de fevereiro de 1933. Embaçadas, as vidraças das exuberantes janelas do Palácio do Reichstag silenciavam a memória do suntuoso monumento edificado para acolher as delegações do Sacro Império Romano-Germânico e, durante a República de Weimar, os parlamentares alemães.
Aos poucos um conjunto de 24 senhores, rigorosamente elegantes em seus sobretudos de caschmere, adentrava os corredores nobres do Reichstag por uma discreta porta lateral, então presidido por Hermann Goering. Aqueles homens formais e soturnos não eram exatamente pessoas, mas antes poderosas engenharias econômicas e financeiras que geriam e que de certa forma, ainda conduzem boa parte do mundo: BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken…
Em volta de uma grande mesa de jacarandá, anuviados pelo aroma e fumaças dos seus montecristos robustos, sob um silêncio intercalado por pigarros e espirros contidos, aguardavam o presidente do Reichstag e o chanceler Adolf Hitler que alguns dos presentes ainda não conheciam pessoalmente. Assobiando, esfuziante e barulhento, Goering entra na sala. Contorna a mesa cumprimentando cada um dos vetustos convidados, em seguida, como dirigente do encontro, balbucia algum agradecimento pela presença de todos e vai direto ao ponto: teremos eleições no próximo dia 5 de março. Ao regime incomoda a instabilidade e a atividade econômica exige firmeza. Se o partido nazista conseguir a maioria nestas eleições serão as últimas nos dez anos seguintes. Ou, quem sabe, pelos próximos cem anos.
Passado o átimo do silêncio aquiescente, um sorridente e descontraído Hitler entra na sala. Cumprimenta a todos e inicia um discurso que duraria justos trinta minutos, para explicar e justificar sua proposta: suprimir a ameaça comunista, conter os sindicatos, constituir um regime forte e criar as condições para que cada empresário fosse um Fuhrer em seus negócios. Hitler retira-se e Goering, no melhor estilo miliciano da época, sentencia: agora senhores, ao caixa!
Lobby, financiamento, doações, contribuição, apoio, ontem como hoje, são sinônimos de corrupção que sempre frequentaram os orçamentos empresariais. Uma semana após aquele encontro o Reichstag seria incendiado, as liberdades públicas na Alemanha reduzidas. Os comunistas, sindicalistas e democratas perseguidos. Hitler, então chanceler, conquistaria a maioria no parlamento em março. Ostentaria e cravaria no coração do mundo o seu fasces lictoriae.
Lembro essas cenas apavorantes enquanto assisto a posse de Joe Biden e da charmosa Kamala Harris na presidência e vice-presidência, respectivamente, dos Estados Unidos da América. Na mesma sacada neoclássica do Capitólio, há poucos dias invadida por bárbaros e delinquentes “trumpistas,” êmulos do nazismo dos anos 20/30 na Alemanha, falando ao mundo, Biden se propõe a inaugurar uma nova era na América e no Ocidente. Crise econômica, crise ambiental, crise sanitária, empobrecimento das classes médias, crise valores e de paradigmas, veloz e profunda mudança tecnológica, refazimento da geopolítica mundial. Não é pouca coisa!
Trump queria fazer na América algo similar ao que aconteceu em Berlim em fevereiro de 1933. Destruir o Capitólio assim como foi destruído o Reichstag, inaugurando uma era de desordem e violência para justificar a implosão das instituições e com elas a democracia. Parece que perdeu! No Brasil o cenário é diferente, mas tem suas identidades no Palácio da Alvorada e no Palácio do Planalto. Nas últimas 48 horas o presidente Bolsonaro ficou acantonado pela sua própria incompetência e cinismo.
As mortes em Manaus e o caos que se anuncia com a falta de vacinas assustaram os nossos endinheirados e congressistas, que não raro são como aqueles tristes senhores que se reuniram com Goering e Hitler uma semana antes do incêndio do Reichstag. A posse de Biden e os eflúvios que emanaram das cenas de Washington na manhã de ontem navegam como uma sombra sobre Brasília.
Os sinais são múltiplos e amplos. No Congresso a ideia do impeachment já frequenta até os gabinetes dos líderes partidários que apoiam o governo. O general Mourão, que estava silente há alguns meses, se colocou na cena marcando suas diferenças com o presidente da República. O STF, que sempre anda entre o cravo e a ferradura, pelo menos no que se refere à pandemia e às vacinas, decidiu apertar o general Pazuello, hoje uma espécie de sinônimo de degradação e incompetência.
Bolsonaro é um ser curioso, com uma vida curiosa e valores assustadores. Sua caminhada, aparentemente vitoriosa, lembra um percurso na escada de Penrose. Criada por Lionel Penrose e seu filho Roger Penrose, seria uma escada quadrada que está constantemente a subir. Em um determinado ponto se pode dar uma volta completa ao objeto e terminar no mesmo local. Assim é a vida de Bolsonaro na imaginária escada de Penrose: ele chegou ao Palácio do Planalto, mas permanece na periferia miliciana do Rio de Janeiro.