Alguns meses se passaram desde que li o mais recente livro de Chico Buarque, “Os Anos de Chumbo e outros Contos” (Companhia das Letras – 2021).
Comecei a leitura com a ideia preconcebida de que o autor iria transitar invariavelmente pelos tempos da ditadura militar, esse sombrio período da história brasileira.
Enganei-me. Ou quase.
Logo no primeiro conto, intitulado “Meu Tio”, percebi que a narrativa transcorria no tempo presente, na cidade do Rio de Janeiro, assim como na maior parte dos outros contos.
“Meu Tio” é narrado em primeira pessoa, mais especificamente pela personagem adolescente que é costumeiramente abusada por seu tio, o tal que dá nome à trama, com o detalhe desconcertante de que os abusos contavam com a conivência dos pais da jovem e com o olhar natural da própria vítima.
O tal tio era poderoso: com seu ar de novo rico, desfilava com seu carrão pela orla do Rio de Janeiro e pelas comunidades locais dominadas pelas milícias, onde era tratado com honrarias e deferências; pagava todas as suas contas sempre em dinheiro vivo, o que sempre lhe abria as portas, evidentemente; estacionava em áreas proibidas mediante o pagamento de propinas; saboreava ostras nos quiosques de praia da orla; ajudava financeiramente os pais da garota que explorava sexualmente e, por fim – vejam só -, fazia questão de comprar o picolé preferido da sobrinha.
O traço marcante e inquietante da narrativa é exatamente a naturalidade com que a jovem descreve o seu cotidiano. A garota apenas narra, sem qualquer interpretação ou adjetivação, as ações que eu, leitora, interpreto e adjetivo como repulsivas e inadmissíveis.
Na vida real, perto do cenário imaginário da ficção, em algum quiosque da Barra da Tijuca, enquanto um transeunte qualquer saboreava distraidamente o seu picolé, provavelmente apreciando a linda paisagem carioca, Moíse, o imigrante congolês, foi brutalmente espancado e assassinado em outro quiosque próximo. O motivo? Ele teria reclamado com o patrão os dois dias de salário que não lhe foram pagos.
Não muito distante dali e alguns dias depois, Durval, morador de um condomínio da Barra da Tijuca, foi morto a tiros por um vizinho porque foi tido como um assaltante, possivelmente por ser negro. Repito: foi tido como assaltante, possivelmente por ser negro.
A história do imigrante congolês e também a do cidadão carioca Durval poderiam tranquilamente fazer parte integrante daquela coletânea de contos, que aborda o cotidiano de uma cidade/país invadida (o) pelo ódio, pela violência, pela ausência de Estado e pelo crescente domínio das milícias que ocuparam o seu lugar. Pela naturalização da violência, pela convivência pacífica com o horror, com a barbárie.
O chocante e estarrecedor caso de Genivaldo parece ter sido também retirado de uma das narrativas do livro. Mas a realidade ultrapassou toda a ficção. Detido pela Polícia Rodoviária Federal por não portar capacete de proteção, o motociclista sergipano negro e portador de doença mental foi colocado dentro do porta-malas de uma viatura oficial e morreu asfixiado pelos gases lançados pelos policiais no interior do automóvel.
Sentados confortavelmente em nosso sofá, assistimos à execução do rapaz, observando suas pernas se mexerem, desesperadamente, até que elas diminuíssem o movimento e parassem de se mover, antecipando o fim.
Chico Buarque parece ter antevisto tudo isso. O primeiro e o último conto da coletânea sãos unidos por um fio invisível, interligando passado e futuro, origem e resultado, causa e efeito. O passado explicando o presente. O presente como reflexo inexorável de um passado mal resolvido. No último conto, aquele que dá nome à coletânea, um filho observa, impávido, as chamas da casa de seus pais, que ele próprio incendiou.
Não há mais dúvida. Vivemos hoje – e não somente ontem – os “Anos de Chumbo”. Observamos, placidamente, da nossa janela, as labaredas de um país, perdidos que estamos entre a indignação e a paralisia.
Vamos continuar a tomar o nosso picolé e fingir que nada mesmo aconteceu?
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada