O fechamento da rede de restaurantes McDonalds na Rússia diz muito. Fila na despedida. Discursos, protestos, cantos e lamúrias. Uma mulher acorrenta-se numa das portas do mais famoso “fast food” do mundo, em Moscou.
Vivi um bom tempo na Europa antes e depois daquele nove de novembro de 1989. Percorri todos os países da cortina de ferro. Lembro-me de uma imagem televisiva. Não era notícia falsa. Uma fila de quilométrica de pessoas na inauguração do Mcdonalds próximo do Kremlin, década de noventa do século passado, após a dissolução do Império Soviético. Milhares de pessoas numa alegria contagiante. O fato se repetiu em Pequim anos depois. Parecia que consumir um sanduíche, fritas e Coca-Cola significava experimentar o gostinho da liberdade, inclusive o prazer de se igualar, por minutos de discreta “fama”(um direito, segundo Andy Warhol) na culinária que é o símbolo do tempo acelerado e dos espaços em disputa, conjugados no sonho meritocrático da vivência capitalista.
McDonalds significava a marca da esperança e de vida nova. Afinal, em nome do socialismo ergueu-se um regime totalitário, criaram-se Guláks, enfim, negaram a liberdade e a igualdade por parte de uma nova classe, a elite burocrática (nomenklatura), gerando um Estado que, ao engolfar e represar a sociedade civil, produziu como resultado líquido uma infelicidade generalizada para russos e todos os seus protetorados, anexados com a anuência das potências Ocidentais (Conferência de Ialta, em fevereiro de 1945, Criméia, jamais esquecer…).
Agora, em tempos nos quais não parece haver mais disputas entre socialismo e capitalismo, mas rivalidades pelo controle e direção de modelos acumulativos, a guerra da Ucrânia baliza esses impasses na disputa do futuro no qual o recurso bélico e a ameaça nuclear já registram o que vamos colher neste e outros séculos como produto civilizatório. Da minha parte não comungo com a maior parte dos experts em relações internacionais, segundo os quais armas nucleares não serão utilizadas. Não há bandidos e mocinhos nesses contextos e o Homem sempre se supera em termos humanitários e de barbárie. Volto ao Macdonalds ucraniano.
Observamos na encalacrada Ucrânia essa sinuca de bico:
a) o império dos EUA e parceiros mais fortes, tendendo ao declínio, por insistência na desindustrialização da seleta e perversa financeirização dos mercados, tentando a fórceps se recompor para permanecer; uma oportunidade ímpar para a sobrevida e autocrítica sobre a fragilizada relação entre democracia e mercado no sentido de um novo modo de vida e de desenvolvimento;
b) a ascensão de outro conjunto de países sob a órbita econômica da China, com apoio do braço bélico russo, numa espinhosa escalada em busca de uma nova ordem hegemônica, reconfigurativa da geopolítica mundial. A pegada chinesa é ampla no seu apetite produtivo, daí o interesse no controle global dos processos de reindustrialização, os quais exigem ampliar o domínio de novas tecnologias e dos serviços. Afinal, em algum momento a Rússia vai entender o que a China já sabe:
O McDonalds e outras marcas icônicas geraram ilusões consumistas desde a queda do Muro de Berlim e com elas as desilusões que nos remetem ao drama ucraniano. Agora o McDonalds produz algo diferente e sintomático, talvez mais do que o delírio do consumir mas a compulsão de consumir algo que jamais consumiremos, o estado de direito com sua pressuposta cara metade, o mercado. Considerem os russos divididos (e os Ucranianos também) quanto ao mundo que desejam, basicamente, entre os que amam a comida rápida e a imagem de consumo ocidental, já não mais provável, sem a menor ideia do esgotamento da democracia liberal, e aquele outro contingente de russos que parecem ter uma certa saudade dos tempos anteriores do velho Império Soviético que Putin, tão amado como odiado (igual Stálin)venera.
Não se trata de paixão pelo status quo ante, mas desejo de restaurar, ampliar e modelar cada vez uma Grande Rússia, sob o formato de um capitalismo eficiente, sem democracia. A emergência progressiva de lideranças burocráticas ultraconservadores é a medida do porvir.
A simplificação exagerada serve para chamar a atenção quanto à confusa mistura de sentimentos representados entre russos: uma certa nostalgia ou saudade de algo bom vivenciado nas migalhas efêmeras da sociedade do consumo e algo aproximado à curiosa melancolia romântica (o de não ter experimentado os frutos dos tempos áureos, imperiais) daqueles que almejam a Nova Rússia, ditando os rumos do mundo, seja lá esse mundo representado como “capitacomunista”, no delírio neo-estalinista, ou de “capitalismo político” na expressão de Branco Milanovic (Capitalismo sem rivais) no qual os direitos fundamentais são suspensos ou despotencializados em troca de uma democracia social distante do ultrapassado liberalismo político. Ao menos até que o movimento na história preencha os requisitos para a eclosão de uma verdadeira revolução francesa tardia, em territórios orientais, ocidentalizando-os.
— Edmundo Lima de Arruda Jr. é Prof. titular aposentado da UFSC. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília. Doutor em Direito pela Universidade Católica de Louvain – Belgica. Pós Doutor Paris X Nanterre (2009) e em Paris VIII St. Denis (1998). Autor de 35 livros. Fundador do CESUSC.