Tenho uma profunda divergência em relação a expressão “legitimamente eleito(a)” quando utilizada para significar que alguém que tenha sido eleito(a), num pleito majoritário – como a eleição de Presidente da República aqui no Brasil –, adquira uma espécie de imunidade para exercer seu mandato até o fim. Me cansa ouvir isso a torto e a direito, quando surgem crises políticas graves, motivadas pelas ações do governante depois de um processo eleitoral tido por “normal” (e penso aqui na fragilidade da Justiça Eleitoral no país em que vivo, no qual é raro que se reconheçam alguns procedimentos pouco ortodoxos ocorridos durante as eleições).
A questão é complexa porque numa sociedade desigual um bom governante não o é para todos, pois os interesses de uns se chocam abertamente com o de outros. Foi por pensar assim (que legitimidade se conquista o tempo todo de governo) que discordei de deus e o mundo durante o impeachment de Dilma Rousseff.
A uma, porque ela não havia sido eleita com um claro programa político de compromisso com os “de baixo”. A duas, porque a escolha dela por ele foi, na verdade, “um ritual de passagem” como descrevem Lílian M. Shwarcz e Heloísa M. Starling sobre a “política dos governadores” na República Velha (Brasil: Uma biografia, 2015, p.352). Lula, temeroso do conflito interno no PT, preferiu uma outsider porque já haviam sido queimadas as duas principais figuras do continuísmo: Zé Dirceu e Palocci.
No caso do impeachment de Dilma, o que pesou mesmo para mim foram as insatisfações demonstradas pela massa desorganizada nas ruas, a incapacidade de convivência com o Congresso e com o próprio PT (no Congresso e fora dele), e o comportamento militarista de imposição, sem discussão, do que ela julgava ser a melhor condução econômica para os rumos do país, com seu empenho em criar os “campeões nacionais” que pudessem construir um subimperialismo a partir destas Terras. Eu lá tenho compromisso com a manutenção de uma sociedade de exclusão social e de dominadores, ainda que sejam conterrâneos meus!???
Mas tudo isso já passou.
Estamos em plena era Bolsonaro. E ouço aqui e acolá, vindo de cima, de baixo, da “soi-disant” esquerda e da direita em todos os seus matizes, que temos de suportar os descalabros dele e sua entourage e seus filhos e seus rompantes (ou suas “características pessoais” que tendem ao permanente conflito…) porque foi em 2018 legitimamente eleito.
Em 2018 ele TEVE pouco mais de 57 milhões de votos. Teria agora esse apoio se houvesse outra eleição? Se um governante só é legitimado pela aprovação que obteve nas eleições, por suposto “normais”, e por suas iniciativas e ações durante o desempenho de seu mandato (isto indica quem é líder mesmo), seria Bolsonaro agora apoiado por ampla maioria?
Não me parece ser a verdade, a começar pelos que estão arrependidos de terem nele votado por sincera avaliação, ou mero oportunismo eleitoreiro, tendo em vista 2022. Mas e quem não é e nem vai ser candidato a Presidente no futuro? Por que estamos tão temerosos assim em relação a ele? Por que ele anda rodeado de militares? Por que os empresários…? Por que os tweets se movem em favor dele? Por quê, por quê, por quê, então?
Os que agora sofrem diante da crise causada pela COVID-19, os que não aguentam mais, pensando no que virá depois com a economia escangalhada e com os milhões de mortos pela fome, com a vida em suspenso , almejando voltar à normalidade. Qual normalidade???
O que posso dizer a esses aí?
Releio texto muito antigo (vinte anos atrás) de Rubens Ricupero, quando representante do Brasil na ONU no governo Fernando Henrique Cardoso e que se intitula “Fuga para a Frente” (publicado na Folha de São Paulo, Opinião Econômica, 09/07/2000). Transcrevo: “A expressão (fuga para a frente) de origem francesa significa criar a impressão de resolver um problema com solução arrojada quando se está, na verdade, a fugir dele”.
Aos que se martirizam acreditando que temos de afrouxar os cuidados de isolamento agora porque senão uma multidão de pobres vai morrer de fome depois que a pandemia tiver acabado, respondo: todos, todos – os pobres, e nós – podemos morrer de COVID-19, hoje ou amanhã. Cuidemos pois do pandemônio da pandemia e do pandemônio provocado por Bolsonaro, pois ele, até agora, não demonstrou preocupação com as mazelas do desemprego, da fome, do SUS. Cobremos dele!
E nós – que temos nós a ganhar ou a perder? – temos apenas e tão somente a obrigação de tentar deixar um Brasil menos ruim para nós e os pobres já que de formas diferentes todos fomos até agora sistematicamente esquecidos pelo atual governo e para isso temos de exigir (pelos meios que pudermos) que Bolsonaro mude suas malfadadas políticas ambiental, econômica, de saúde…
* Sandra Starling é advogada e Mestre em Ciência Política pelo DCP da FAFICH (UFMG), com a dissertação “Governo Geisel: as Salvaguardas Visíveis e Invisíveis do Projeto de Distensão (1974-1979)”