“À autarquia do individuo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que rara e difícil, a obediência aparece algumas vezes, para os povos ibéricos, como virtude suprema entre todas. E não é estranhável que essa obediência – obediência cega, e que difere fundamente dos princípios medievais e feudais de lealdade – tenha sido até agora, para eles, o único princípio político verdadeiramente forte”.
A inquietante quadra bolsonarista, com suas inimagináveis ações e manifestações –, tanto nos Palácios quanto nas ruas e redes sociais –, fazem dessa perplexidade estímulo esgaravatador das nossas sugestivas identidades. Fatigué da perfumaria, marxista e neomarxista, francesa que esculpiram nossa formação acadêmica, pelo menos, nos últimos 50 anos, revisito um dos melhores interpretes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda – em Raízes do Brasil – de quem colho a citação que abre esse artigo, assim como fiz no texto da semana passada.
Como olhar para o furor do mando e o silêncio bovino dos brasileiros diante da arrogância do desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, que humilhou, com inaudita boçalidade, um servidor do Estado que lhe pediu que cumprisse a Lei? O que fazer diante do casal, numa situação similar de desobediência às normas sanitárias, dias atrás, que, ao ser tratado pelo substantivo masculino “cidadão” – ou seja: aquele que habita uma cidade e está submetido aos direitos e obrigações daquela comunidade -, proferido pelo fiscal público, reagiu com uma suposta hierarquia social de titularidade: “cidadão não, engenheiro civil. Melhor do que você!”? E quanto àquele empresário que, diante da polícia a sua porta, chamada porque ele agredia a esposa, ofereceu as seguintes pérolas ao distinto público: “Você é um bosta, é um merda de um PM que ganha mil reais por mês. Eu ganho trezentos mil por mês. Eu quero que você se (…), seu lixo!”?
Todos esses fatos foram fartamente divulgados pela mídia e objeto de inúmeras reflexões pelos nossos comentaristas. Assim como a escatológica, pornográfica, e hoje histórica, reunião ministerial do dia 22 de abril. Da mesma forma, as queimadas na Amazônia, os descalabros na Educação, as ofensas morais e humanas praticadas pelo ministério da Saúde diante da pandemia da covid-19, as palavras e atitudes dantescas do presidente Bolsonaro diante do sofrimento e descaminhos do País que ele se queixa de presidir. Os episódios são incontáveis e farão dessa quadra de inicio de década uma das mais nefastas de nossa história.
Mas, constatá-las e denunciá-las, mesmo que importante, nada resolve ou nos faz compreender. Porque assim agimos e o que nos faz a isso tolerar e normatizar? “A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem. Não existe, a seu ver, outra sorte de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva centralização do poder e na obediência”, nos provoca Sérgio Buarque de Holanda, auscultando nossa alma ibérica.