Em 9 de maio escrevi artigo para este Os Divergentes, aturdido com o deboche do presidente da República, ao anunciar que promoveria churrasco no Palácio da Alvorada, no mesmo momento em que brasileiras e brasileiros eram enterrados às centenas, em covas abertas por escavadeiras, vítimas de uma pandemia que se anunciava, e se confirmaria, nos dias, semanas e meses que viriam, como a maior tragédia sanitária coletiva da nossa história.
“Bolsonaro é mau, e como toda maldade precisa ser extirpado” foi o título que encontrei para o artigo, aquele que traduzia o horror que me ia na alma naquela manhã de domingo.
Horror ampliado pela certeza das barreiras políticas que se antepunham ao imperativo ético de banir da nossa vida pública ser tão abjeto e desprezível pela única via possível: a do impeachment. A começar pela necessidade de, em se perseguindo o caminho constitucional, ao final dele encontrar Hamilton Mourão. Um militar capaz de uma fala mansa e, quando necessário, até em um inglês impecável, mas igualmente capaz de louvar a tortura e o maior dos torturadores, Brilhante Ustra.
Não me importa aqui historiar, como se estivesse a fazer uma retrospectiva dos crimes cometidos em série por Bolsonaro desde a posse em 1º de janeiro de 2018, e de forma sórdida na gestão da pandemia do coronavírus em 2020. Jamais faria melhor do que o fez a Agência Pública, ao reportar e analisar todos os 54 pedidos de impeachment que, à exceção de um arquivamento, constituem o principal legado, por deliberada omissão, de Rodrigo Maia na presidência da Câmara dos Deputados
O que me importa é compartilhar uma reflexão, que começo relembrando quem foram os principais ‘enablers’ da maldade de Jair Bolsonaro na presidência da República, me valendo aqui de uma categoria analítica extraída da crônica política estadunidense.
Não muita empregada por aqui, e geralmente traduzida por ‘facilitador’, essa categoria em seu sentido original quer dizer mais do que ‘facilitar’, aproximando-se da ideia de criar condições objetivas para que um governante – mas poderia ser um criminoso, ou um governante criminoso – seja capaz de executar planos, se não abertamente criminosos, no mínimo maliciosos. Por exemplo: no ainda patético cenário de um Donald Trump contestando sua derrota para Joe Biden, seu principal ‘enabler’ tem sido o ex-procurador da justiça e ex-prefeito de Nova Iorque, Rudolph ‘Rudy’ Giuliani. Um ‘enabler’, porém, pode estar no próprio governo, ou, mesmo estando, recusar-se a esse papel subalterno, como foi o caso do ministro da Justiça de Trump, William Barr, ou de outras autoridades estaduais republicanas, como aconteceu na Geórgia e no Arizona. Ou dos diversos juízes federais nomeados por Trump que foram derrubando, uma a uma, as absurdas, quando não abertamente conspiratórias, ações judiciais impetradas por Giuliani.
O que me traz de volta ao Brasil, ao Supremo Tribuna Federal, e ao seu ex-presidente Dias Toffoli.
Se no Poder Judiciário o mais óbvio facilitador de Bolsonaro, para ficar a partir de agora com o termo usual em português, foi João Otávio de Noronha, o mais caviloso deles foi Toffoli. Arvorando-se papel de condestável – no sentido etimológico com origem no império romano, de comes stabuli, ou seja, estribeiro-mor ou superintendente das cavalariças -, frequentou palácios às escondidas, e promoveu jantares, como o oferecido para Davi Alcolumbre e o candidato a vaga no STF, depois ministro, Kassio Marques, durante o qual recebeu visita surpresa (sic) de Bolsonaro, protagonizando um dos mais pornográficos episódios políticos da história da República.
Já na chamada ‘ala militar’, em verdade o núcleo duro da facilitação de Bolsonaro, sem surpresa pontifica Augusto Heleno, o general que ninguém jamais definirá melhor do que o fez Janio de Freitas, ao descrevê-lo, com apurado sarcasmo, como reduzido de corpo e um poço de ressentimento. É a blindagem que assegura aos Bolsonaros, à frente do GSI e da Abin, que o distingue dos demais generais palacianos, tornando desnecessária a menção explícita aos seus nomes. Todos, não obstante, cúmplices inequívocos da maldade do presidente, tal como sempre o serão Sergio Moro e Paulo Guedes.
Mas esse círculo do mal não teria sido jamais possível sem a cumplicidade da mídia, e aqui passo ao largo das chamadas mídias sociais, para focar tão somente na imprensa corporativa e seu jornalismo de ocasião, ressalvadas as eventuais exceções pessoais, o que, no conjunto, entretanto, pouca diferença faz. Globo, Folha, Estadão, os pontas de lança desse mau jornalismo, tentam apagar seu passado golpista – e não apenas o mais recente – nos brindando com editoriais iluministas, condenando Bolsonaro por suas erráticas (sic) declarações e atitudes, indignas da mais alta autoridade da República, e não deixando pedra sobre pedra sobre a gestão bolsonarista da crise sanitária do coronavírus. Mas, deixando abertas as portas das suas redações para o dia em que o governo retomará, assim esperam, sua agenda de reformas antipopulares. E aí tudo voltará ao velho normal, a maldade atávica de Jair Bolsonaro, e seu círculo de facilitadores, deixados à mera curiosidade da História.
Essa cumplicidade estrutural, entretanto, é o que permite Bolsonaro a continuar praticar, impune, o horror retórico que o alimenta e ao seu séquito de fanáticos. Trata-se de um criminoso em série que, no seu mais recente ato de maldade explícita, e é penoso relembrar isto, debochou sem piedade do sofrimento de uma sobrevivente da prática mais cruel que um ser humano pode impor a outro: a tortura. Neste caso, e não pela primeira vez, sua vítima foi a ex-presidente Dilma Rousseff. As duras, algumas, outras nem tanto, notas de desagravo e de solidariedade a ela nada mais foram do que a confirmação, para Bolsonaro, de que ele continua livre para praticar seus crimes em série, protegido por seu círculo de velhos, e novos facilitadores, pois estes continuarão a surgir, na caserna, nos tribunais, no ministério público, na política, nos chamados mercados, na sociedade civil, nos submundos da polícia e nas milícias.
O maior facilitador de Bolsonaro em 2020 talvez tenha sido aquele que menos pareceu ser: o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Que arranjo institucional foi esse que a Constituição de 1988 nos legou, de um único indivíduo ter o poder de decidir se um presidente da República cometeu crime de responsabilidade, ou não, mesmo que ele o tenha cometido aos borbotões! Se é fato que o presidente da República poderia ter sido politicamente extirpado, ou pelo TSE, ou por investigações do STF e Polícia Federal – o que chegou a me parecer possível em certos momentos -, as evidências postas na mão de Maia, em mais de 50 pedidos de impeachment, assinados por quase 1500 pessoas, não poderiam ter sido, como não podem continuar a ser, desconsideradas, como o foram até agora.
A crise sanitária chegou a ser evocada, em determinado momento da conjuntura por Rodrigo Maia, para bloquear um processo de impeachment, o que hoje soaria absurdo, dada a responsabilidade direta dele e de seu general-ministro pelo descontrole da pandemia no Brasil, culminando com as omissões atuais na gestão do processo de se obter e autorizar vacinas. Mais: sem que o presidente da Câmara e, inclusive, líderes oposicionistas, publicamente o reconhecessem, a falta de condições políticas para se chegar ao impeachment, caso fosse aberto, foi outro obstáculo avocado nos bastidores. Como o foi também a aparente apatia da sociedade, como se ela, pelo menos a parte lúcida dela, não estivesse sufocada pelo isolamento social e pelas perdas pessoais decorrentes da pandemia.
É possível, porém, que a impunidade criminosa em série de Bolsonaro tenha sido assegurada em última instância, e ironicamente, por Hamilton Mourão. Rodrigo Maia chegou a reconhecer, em um instante de sinceridade política, que não se faz impeachment sem, antes, combinar com o vice. Mas, combinar com quem, além do próprio, que certamente não veria a vantajosa promoção com maus olhos? Com o PRTB, de Levy Fidelix? Com o comandante do Exército e seus pares da Marinha e da Aeronáutica? Com o Ramos e o Heleno? Com o PT, e demais partidos de esquerda e centro-esquerda, apesar de Lula e Dilma? Com Michel Temer e sua experiência recente de ascender, pela via de um golpe parlamentar, de vice decorativo a presidente da República?
Isto posto, Jair Bolsonaro inicia em 2021 a metade final do seu mandato de horrores, sem que esteja muito claro quem ainda são, ou serão, seus facilitadores, seu ‘enablers’, rumo à eleição presidencial de 2022.
Difícil ver o trêfego e corporativo Luiz Fux seguir os passos pretensiosos do pretensioso Toffoli, este agora de volta à planície do judiciário, de novo contente em servir de auxiliar do seu colega e mentor, Gilmar Mendes. Difícil imaginar a caserna, afora o ressentido Heleno, Ramos, Braga, etc., feliz com o desgaste que toda uma corporação, que tem lá o seu amor próprio, de uma carreira estatal reconhecida, está a passar com a incompetência de um general da ativa no ministério da Saúde. Já fácil é prever que o cada vez mais diminuto Paulo Guedes se aproxima de ser abandonado pela Faria Lima. Mas nem o espírito de Roberto Campos encarnado no neto presidente do Banco Central, eventualmente feito ministro da Economia, será suficiente para resgatar uma economia que continuará doente, e, que os deuses não nos sejam cruéis a este ponto, sem um plano consistente de aquisição de vacinas, insumos e vacinação.
Cenário a que se deve acrescentar a mudança de comando das Mesas Diretoras do Congresso Nacional, onde, na Câmara, é muito forte a possibilidade de Baleia Rossi, o candidato articulado por Rodrigo Maia, e formalmente apoiado, além do MDB, por PSDB, DEM, PSL, Cidadania, PV, e por PT, PSB, PDT, PCdoB e Rede, sair vencedor. Isto ocorrendo, o círculo de facilitadores de Bolsonaro na Casa, do qual Maia era um elo que volta e meia ameaçava o presidente da República, poderá resultar em algo mais politicamente ameaçador para ele.
E aqui está a escolha de Sofia posta para os partidos de oposição neste ano de 2021: deixar Rodrigo Maia, João Dória, Moro/Rede Globo, e quem mais aparecer, seguir com seu plano, que consideram imbatível, de derrotar Jair Bolsonaro nas urnas em 2022, ou valer-se de uma eventual posição de poder, ainda que relativa, na Mesa da Câmara, para pressionar pelo impeachment, e tentar banir da vida pública, pelo tempo possível, essa encarnação viva do mal que Bolsonaro incorpora e representa?
Por fim, e para não deixar este já longo texto sem uma conclusão, crimes cometidos são crimes a ser julgados, e punidos. A maldade que Jair Bolsonaro encarna e representa tem que ser submetida a um julgamento político, mesmo ao risco de vê-lo se safar, e mesmo ao custo de se ter que falar de, e com, Hamilton Mourão. Este é o imperativo democrático que se nos impõe, os democratas, neste momento, e para o qual, mesmo na forma de uma quixotesca resolução de Ano Novo, devemos nos preparar, apesar de todas as incertezas que 2021 ainda nos reservará, na luta, individual e coletiva, pela saúde física e mental que Jair Bolsonaro, com toda a sua maldade, insiste em nos negar.
*Murilo César Ramos é jornalista, Professor Emérito
da Faculdade de Comunicação da UnB