Seria patético, se não fosse trágico. A manifestação de um mal-educado ministro, na reunião do dia 22 de abril no Palácio do Planalto, por inacreditável que possa parecer – e, por razões notórias, não deveria ser assim − guarda semelhança com pregação de Ernst Röhm, o líder da SA – Sturmabteilung (Divisão de Assalto) do partido nazista. Röhm, cujo carisma entre os “camisas pardas” só não era maior que o do próprio Hitler (sua falange chegou a ter mais de três milhões de membros, quando o Exército regular só reunia pouco mais de cem mil recrutas), dizia que, com a nomeação de Hitler como Kanzler (primeiro-ministro) pelo Reichspräsident, Marechal Hindenburg, em 30 de janeiro de 1933, os nazistas haviam “conquistado o poder”. Mas acrescentava: a tarefa da SA de completar a revolução nacional-socialista “ainda estava por fazer”.
Naquela luminosa manhã do dia 22 abril a ideia de uma segunda revolução, nas palavras de um certo ministro de Estado, também ecoou no gabinete presidencial em Brasília.
Na Alemanha, a Divisão de Assalto era um grupo paramilitar do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Aquela fala ministerial, a par de uma eventual difamação ou injúria ampla, geral e irrestrita desferida contra todos os brasilienses, a começar pelos magistrados do Supremo Tribunal Federal, não teria importância alguma se não tivesse tido ressonância. É que o Diktat do ministro reverberou na declaração do presidente da República, quanto a seu propósito de armar brasileiros para, como por ele dito, defender a liberdade e também estruturas vasculares presentes no canal anal.
Não estaria em curso um estratagema para a organização de um coletivo paramilitar?
Uma segunda revolução, nas atuais circunstâncias, pede a conversão de falanges do ódio digital em agrupamentos paramilitares. A Constituição expressamente proíbe a arregimentação paramilitar. A Lei de Segurança Nacional considera crime constituir, integrar ou manter organização ilegal de tipo militar, de qualquer forma ou natureza, armada ou não, com ou sem fardamento, com finalidade combativa. Até mesmo uma conduta mais mitigada como integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça, é considerada delito contra a segurança nacional.
Seria uma absoluta estupidez o argumento de querer equiparar a formação de grupos paramilitares no Brasil com o direito ao porte de armas assegurado aos cidadãos norte-americanos pela Segunda Emenda à Constituição de 1787. Grupos paramilitares são coveiros do Estado de Direito democrático, não seus guardiões. Como considerá-los democráticos, quando procuram, na verdade, impedir o livre exercício do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, a par de proteger hemorroidas?
Ensina-nos Lawrence Tribe, professor de Direito Constitucional na Universidade de Harvard (Cambridge, EUA), que o porte de armas assegurado pela Segunda Emenda está vinculado à organização de milícias para a “segurança de um Estado livre” (palavras do texto constitucional). Na dicção do eminente professor, aquela emenda não cuida do armamento a torto e a direito da população norte-americana para autodefesa, caça ou tiro esportivo, mas, sim, de uma mobilização do cidadão-soldado para a “defesa natural de um país livre”; para a “promoção de valores com os quais o republicanismo cívico está associado”. E vale lembrar que, de acordo com o Artigo 1º, Seção 8, da Constituição dos EUA, compete ao Congresso “regular a convocação da milícia, a fim de garantir a execução das leis da União, reprimir insurreições e repelir invasões”.
Um equivalente dessa norma pode ser encontrado no art. 21 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”. Durante a Assembleia Nacional Constituinte tentou-se, sem sucesso, reproduzir, no projeto de texto constitucional em elaboração, esse dispositivo da Constituição portuguesa. Hoje, pensando, bem, dado o grau de ódio disseminado entre os brasileiros pelas redes sociais “milicianas”, valeria a pena seguir a orientação de Samuel Adams, herói da Independência dos EUA, para quem o porte de armas deveria ser o mais restrito possível, só sendo permitido aos “cidadãos pacíficos”.
Mas, voltando à Divisão de Assalto do partido nazista. Após a “conquista do poder”, tantos foram os episódios de tumulto, violência arbitrária, assassinatos e outros crimes graves, provocados ou perpetrados por aquele, de início, “braço das brigas de rua e badernas de botequim do movimento nazista” (Richard J. Evans), que o próprio Hitler preocupou-se. A solução definitiva se deu na madrugada de 30 de junho de 1934. O Führer, em pessoa, no episódio conhecido como a “Noite das Facas Longas”, com o apoio do Exército, então comandado pelo general Werner von Blomberg, ordenou a prisão de líderes da SA, a começar por Ernst Röhm, e determinou a execução de todos eles em um campo de concentração na Baviera.
Pergunto: nossas Forças Armadas, ciosas, como dizem, do respeito à Constituição, tolerariam a formação de organização ilegal de tipo militar, armada, com finalidade combativa, que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos? Como reagiriam, no caso em que a formação de falanges paramilitares viesse a ser estimulada pelo comandante supremo do Exército, da Marinha e da Aeronáutica?
Em tempo: em 1938 Hitler exonerou o general Werner von Blomberg de seu posto como Ministro da Defesa, por considerá-lo hesitante em relação aos preparativos da guerra que o Führer pretendia desencadear. Talvez o − em todos os sentidos − mal-educado ministro não saiba: isso se deu poucos meses antes da Noite dos Cristais. O que veio depois, todos nós estamos cansados de saber.
* Thales Chagas Machado Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG