Guerra de tribos e intolerância

Nosso mundo multicultural deve ser intercultural e muito maior que tribos artificiais produzidas em tempos polarizados, sim, mas potencializados na desinformação e nos ressentimentos.

O planeta Terra atingiu, em novembro, 8 bilhões de habitantes, segundo a ONU

Sobre uma certa crítica à ocidentalização nefasta do mundo, tenho a pontuar, superficialmente.

No fundo permanece na evolução social algo imutável, malgrado a evidência das convulsivas disputas morais e políticas diante da secularização. São tribos, rituais, ordálios, mimetismo, redefinidos nos ornamentos armadilhosos de uma modernidade cativa na lex mercatoria em tempos digitais.

Como conciliar um mundo com oito bilhões de seres humanos e milhões de modus vivendi atravessados por mitos e ritos tradicionais, modernos e pós-modernos?

Peter Berger – Foto Reprodução YouTube

São “Múltiplos Altares da Modernidade”, segundo Peter Berger. No panteão dos grandes pensadores que impactaram o mundo dá para juntar Marx, no fundo um romântico cartesiano como tantos outros herdeiros da Ilustração, não escapando muitos dos ícones da razão da sofrência, Nietzsche, Kierkegaard e Freud. Essas racionalizações aparentemente tão radicalmente (e aparentemente) distantes, podem ajudar na busca de unidade complementar, se relidas e traídas, enaltecendo-lhes as parcelas de verdade e denunciando as loucuras no mundo que elas de alguma maneira ajudaram a criar. Loucura a conferir nos usos e abusos por Estados totalitários e nos mercados (de ideias e do controle) e na curiosa guerra de fundamentalismos entre suas subtribos de seitas perdidas em disputas de clientelas numa grande aldeia global.

O território e as leis para relacionar ovelhas, áreas e pastoreio sob direção de um Ancião, d’antes mais determinadas, tornaram-se confusos e pequenos demais na modernidade industrial (capitalista mas também presente nos socialismos reais), uma incubadora de pluralismos. Aí a questão de qual sociabilidade possível entre tribos cada vez mais coloridas.

Homo sapiens

Nossos cérebros foram programados para relacionamento com os seus pares mais próximos, da mesma tribo. O homo sapiens funciona com dois modos: o automático, instintivo e ineliminável, e o programado, cultural, introjetado pelo exercício do discernimento ou Razão, de acordo a Joshua Greene (Tribos Morais. A tragédia da moralidade no senso comum). Mais aí temos algumas questões muito mais profundas que aquelas “lógicas” presentes nos movimentos da política em ritmo de torcidas de futebol.

Sigmund Freud

A Razão pode conter (impunimente?) o “irracional”? Alguns racionalizam no sentido positivo. Freud, na contramão, se mija nas calças de tanto rir do que considera uma quimera, o homem fora das Leis ou da ditadura do inconsciente, embora ele e Nietzsche tenham consciência da potência do “irracional-instintivo”(entre aspas), se compreendido, realisticamente, como parte constitutiva e possibilidade de seres humanos tornarem-se mais humanos em busca de suas afirmações subjetivas.

A consciência sem grandes ilusões com heróis e salvadores da pátria pode servir para tentar a vida (potência) em convivências tribais partilhadas nos limites sempre tensos daquilo que Weber tipificava como “politeísmo de valores”. E aí a Lei é uma condição de possibilidade para modos de vida mais solidários.

Gilmar Mendes (à esq.) e Ricardo Lewandowski (à dir.) foram hostilizados verbalmente ao saírem de hotel em Nova York, nos EUA – Foto Reprodução

Hoje podemos, mais que antes, eleger nossos Deuses e Demônios. Sob um alto preço, o das boas sublimações que permitem erguer a Cultura e instituições. Derrotados nas urnas expressam comportamentos antissociais ao crer em fraude eleitoral e na má fé de juízes da Corte Suprema, como se fosse dado a cada cidadão o direito de julgar ministros do STF. Até que se encontre outras formas institucionais, e devemos buscá-las, não podemos deslegitimar o que bem ou mal é o resultado histórico das lutas por democratização em um país pleno de anacrônicas e arcaísmos.

O grande Ailton Krenac e também Tony Judt estão certos ao vaticinar a urgência da busca de novas trilhas na floresta. Mas essa floresta original perdeu a virgindade há séculos, desde o primeiro invasor no território de outras tribos antigas. O fenômeno é por demais remoto. Nossas milhares de etnias viviam em guerra. Quanto ao fato de todos os povos indígenas terem mantido íntegro o meio ambiente, pois sob um modo de produção comunista (no melhor sentido), um retorno à suas formas de vida autênticas e originais torna-se muito difícil diante da lex mercatoria, a rainha da tribalização hegemônica.

A tribos vencedoras tendem a canibalizar formas simbólicas, mesmo se não presentes as práticas antropofágicas entre os caras-pálidas, mas uma sucessão de genocídios.
A preservação da espécie leva leões vencedores a matar as crias dos leões vencidos. Sem ilusões. O mundo moderno não eliminou o mundo dos primitivos, mas o reconfigurou, remetendo-os forçadamente para a luta por sobrevivência em territórios físicos reduzidos diante da grandeza e extensão das possibilidades simbólicas no terreno intercultural.

O filósofo Karl Marx – Foto Wikicommus

Se partimos da ideia que os territórios agora tornaram-se menores do que nunca com a ocidentalização, e que Marx já se encantava com essa capacidade do Capital em remover, quando do seu interesse, fronteiras culturais distantes dos seus tempos e espaços, e que faria aquele pensador hoje? Imagine o leitor Marx vivendo neste século, carregando de lá prá cá, em jatos, laptop, celular e relógio cardíaco. O filósofo de Trier ficaria maravilhado com aquelas engenhocas. Temos que exercer o impossível de Hegel. Pensar o positivo e o negativo no mesmo conceito. Como tribos adversas podem construir e partilhar o Comum?; ou terreno sem o qual tenderá a vencer o estado de natureza do animal, que somos.

Como apreender com as formas sociais mais antigas em novos processos de sobrevivência e vivência atuais e num mundo no qual o virtual é o real?

Nós sabemos, desde Maquiavel, que há limites na ação prática e na ação do pensamento. Realismo e crítica social, quando dissociados, reproduzem qualquer status quo, impedindo transformações. Realismo excessivo vira pragmatismo autista. Crítica utópica sem incidência concreta no real histórico, torna-se um obstáculo reacionário à mudança. Há se buscar um ponto arquimediano nesse dilema que opõe comunidade x sociedade.

Lulopetista

Num tempo de intolerâncias um bom começo parece exigir tolerância. A tribo lulopetista venceu o último round contra as forças ultradireitistas. Mas à retórica do uso indiscriminado dos termos fascismo e fascista, compreensível no bojo das disputas eleitorais, seguiram-se artigos e textos “analíticos” ou com pretensões acadêmicas. Eles tumultuam a comunicação no campo do político, impedindo a prevalência das divergências entre adversários e não o estímulo ao ódio aos inimigos. Essa simplificação obtusa da luta de classes, além de bloquear o diálogo que Lula pretende, legitima a ultradireita e instiga, para “revolucionários” da velha guarda, a desenterrar Lenin do túmulo. Nesse maniqueísmo perde a democracia e os milhões que dela dependem para reconhecimentos muitos.

Nosso mundo multicultural deve ser intercultural e muito maior que tribos artificiais produzidas em tempos polarizados, sim, mas potencializados na desinformação e nos ressentimentos.

– Edmundo Lima de Arruda Jr

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