Cena: consultório médico.
Conversa entre médico e paciente do grupo de risco. Paciente entra curvado e andando com dificuldade. Segue o diálogo:
– Bom dia, Doutor.
– Bom dia, Sr. Sente-se, por gentileza. Preciso fazer sua ficha antes de começar a consulta, OK? Nome completo e idade, por favor?
– Pois não. Meu nome é João Ribeiro da Silva. E tenho 89 anos, o Sr. me desculpe.
– Desculpas por quê?
– Farei 90 anos em breve. Fico muito incomodado e constrangido por isso. Não gosto de revelar minha idade.
– Vaidoso o Sr, não ? – disse o médico ironicamente.
– Não, doutor. Não é por vaidade não. Fico constrangido porque descobri que dou muito prejuízo para o Brasil. Para a economia.
– Como assim? O Sr. deveria estar feliz! Disposto e com saúde, pelo que posso perceber. Quem lhe disse essa história de prejuízo?
– Um Ministro de Estado disse isso outro dia. Vi na TV. Fiquei arrasado. Essa saúde toda, que vergonha! Sabe, eu até menti a minha idade quando falei com a atendente lá fora. Para que ninguém me olhasse com olhos enviesados e a moça não me atendesse com má vontade. Sei que os médicos não podem ficar perdendo tempo comigo. Há tantos jovens pra cuidar, não é mesmo? Sei que prejudico muita gente.
– Não diga isso. O Sr. tem direito. Não trabalhou a vida toda, não pagou seus impostos?
– Claro, doutor. Trabalhei mais de 40 anos e contribuí para a Previdência Social. Mas todo mundo diz que se eu viver muito a previdência quebra… Não posso quebrar a previdência. É por isso que fiz tudo direitinho. Tudo.
– Direitinho como? Perguntou o médico, interessado.
– Ah, Doutor. Segui todas as recomendações do governo. Todos os exemplos. Andei por aí sem máscara, caminhei em meio a multidões, fiz visitas a amigos e parentes, compareci a várias festas dançantes para idosos, fui às compras e participei de bingos e dos festejos familiares no final do ano. Frequentei praias. Tomei cafezinho em padarias. Andei até de motocicleta sem capacete. Tudo durante a pandemia.
– Meu Deus! Que perigo. E a covid?
– Pois é . Eu peguei. Fui infectado. Logo depois dos festejos do Carnaval de rua. Mas sobrevivi. Veja que desgraça!
– Desgraça??? Perguntou o médico, incrédulo.
– Claro. Gastei recursos públicos! Precisei de internação, oxigênio, remédios, um horror.
– Pelo menos tomou vacina? O Sr. é do grupo de risco.
– Não, claro que não. Já disse ao senhor que segui todas as recomendações do governo.
– Entendo, disse o médico (sem compreender nada).
– Mas agora não entendo mais nada, lamentou o idoso.
– Não entende o quê?
– Depois de mais de um ano de pandemia e 400 mil mortos, o governo agora está fazendo propaganda para eu usar máscara! Vi até o Zé Gotinha de máscara. É bem verdade que o Zé Gotinha é jovem… E também não tinha nenhum velhinho na propaganda.
– Não é que o Sr. tem razão? Não vi nenhum velhinho mesmo na propaganda. Que interessante… – disse o médico. Mas o importante é que o Sr. está aqui, firme e forte.
– Sim, infelizmente. Mas se Deus quiser, por pouco tempo. O Sr. acredita que eu até tentei colaborar com o governo de outra forma?
– É mesmo? De que forma? – indagou o médico, com sincero interesse.
– Aproveitei as facilidades atuais e comprei uma arma. Para autodefesa. Vi na TV também que era importante para acabar com a violência.
– E o Sr. sabe manusear uma arma?
– Não sei, não senhor. Mas precisava ajudar a acabar com a violência. E foi um tiro no pé. Aliás, é por isso que estou aqui.
– Como assim?
– O tiro no pé. Meu pé. Atirei nele sem querer. Mas não me arrependo de ter comprado a arma.
– Não?????
– Não. Podem até reclamar que dou muita despesa para o Estado. Mas ninguém vai me chamar de maricas. Isso eu não aceito!