Futebol é esporte simples. Dotado de tal simplicidade que é disputado em remotos lugarejos ou fazendas. Basta rústico campo de terra batida, duas equipes, a bola, o árbitro, dois bandeirinhas e o vestiário, mesmo sem chuveiro.
Em contraste com os 96 artigos da Lei Pelé, são 14 as regras aprovadas pelo Comitê Internacional de Footbal Association, conhecido como Board, integrado por oito membros, quatro designados pela FIFA e quatro indicados pela Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. O Board é conservador. Resiste à mudança de regra, medida que pede calma, reflexão e muito cuidado.
Sediada em Zurique na Suíça, a FIFA é supranacional. Quando o assunto é futebol detém autoridade superior a dos países membros, seja a poderosa China ou o modesto Equador. É o elo que une e fortalece as confederações nacionais. Não há como ignorá-la. Determina o local e a data da Copa do Mundo, o calendário de disputas internacionais, abre e fecha janelas de transferências, decide os conflitos entre clubes de distintos países.
Foi fundada por reduzido grupo de dirigentes em Paris, no dia 21 de maio de 1904. Resultou da necessidade do combate à pirataria praticada na Europa no começo do século passado, quando jogadores famosos eram aliciados para mudarem de clube, transferindo-se de um país a outro mediante recompensa em dinheiro.
É lugar comum dizer que futebol é a paixão nacional. O dramaturgo Nelson Rodrigues, fanático torcedor do Fluminense, na expressão de Armando Nogueira “o nosso Homero sem tirar nem por”, adorava futebol. O livro “À sombra das chuteiras em flor”, coletânea de crônicas organizadas por Rui Castro, descreve “A realeza de Pelé”, fala de “Didi sem Guiomar”, narra “A descoberta de Garrincha”, denuncia “O juiz ladrão”, homenageia Zizinho, “O craque sem idade” (Companhia das Letras).
O centenário futebol brasileiro, capaz de se reerguer após a derrota por 2×1 para o Uruguai na Copa de 1950 (Anatomia de uma derrota, Paulo Perdigão, Ed. L&PM) e a acachapante vitória da Alemanha por 7×1 na Copa de 2012, está sob a maior ameaça da história. Refiro-me ao enquadramento da infecção pelo Covid-19 como doença profissional. Prescreve o Art. 20, I, da Lei nº 8.213/1991, que “Dispõe Sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social”: “Doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social”.
São exemplos clássicos o saturnismo (intoxicação aguda ou crônica provocada pelo chumbo ou algum dos seus sais) e a silicose (fibrose crônica dos pulmões causada pela inalação constante de poeira de sílica).
Como esporte de contato, o futebol pode causar lesões. Durante partidas ou treinamentos são inevitáveis choques e quedas. Cabeças, braços, joelhos, canelas e tornozelos estão expostos a riscos de contusões. A infecção pelo Covid-19, entretanto, nada tem a ver com a prática do futebol. Surgida em dezembro na China a peste avançou pelo planeta e impõe medidas preventivas, até ser encontrada vacina eficiente. Pessoas com mais de 60, 70 ou 80 anos, com reduzida capacidade de resistência, ou negligentes, são as mais susceptíveis à contaminação.
Observo ilustres juristas invocarem a Constituição, a proteção à dignidade da pessoa humana, o Código Civil, o Código Penal, a Lei de Proteção ao Meio-Ambiente e o Estatuto do Consumidor, para sustentarem que o futebolista profissional, infectado pelo coronavírus, é vítima de doença classificada pela lei como profissional. Não lhes basta que esteja doente. Desejam ir além da Previdência Social para enquadrar o empregador no Art. 186 do Código Civil, como responsável por ato ilícito e dele cobrar pagamento de indenização e de pecúlio mensal.
A primeira regra de interpretação exige que se aplique a norma legal específica ao caso em julgamento. O recurso à analogia, à equidade, aos princípios gerais de direito, aos usos em costumes, vale apenas “na falta de disposições legais ou contratuais”. É o que determina o Art. 8º da CLT.
O Art. 28, § 1º, da Lei Pelé (Lei nº 9.615, de 24/3/1998) coloca os atletas profissionais sob a proteção da legislação trabalhista e da Seguridade Social. Uma vez inscrito no INSS passa a gozar da “cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada” (CF, Art. 201, I).
Forçar a mão para enquadrar como doença profissional a pandemia surgida em dezembro na China e desembarcada no Brasil em fevereiro, significa ir longe demais. O Covid-19 provoca doença grave que pode ser fatal. Longe está, entretanto, de ser moléstia definida pelo Art. 20, I, da Lei nº 8.213, porque não é “produzida ou desencadeada pelo exercício peculiar de determinada atividade”, e não se achar presente na “respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social”.
A ameaça que paira sobre o futebol brasileiro não deve ser subestimada. Praticado regularmente por cerca de 800 clubes profissionais, com mais de 10 mil times federados e milhares de atletas registrados, além de incontável quantidade de amadores, o futebol projeta a imagem do Brasil no exterior, é a diversão barata do povo e uma das poucas vias de acesso econômico e social para adolescentes pobres e favelados.
Como demonstração de sensibilidade, patriotismo e conhecimento do mundo real, espero que os senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal deixem o futebol prosseguir em paz.
— Almir Pazzianooto é advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho