Fernando Henrique Cardoso falou à CNN Brasil. Uma entrevista de meia hora, no último dia 1º, na qual tratou de diversos assuntos da atual conjuntura política brasileira, e cuja principal repercussão pública resultou de sua análise sobre um eventual impeachment de Jair Bolsonaro:
“Algumas pessoas falam em impeachment. Eu acho que o objetivo político não pode ser derrubar quem foi eleito. O que tenho dito sempre e vou repetir: tem que ter paciência histórica. Temos que nos preparar para manter as instituições, manter a democracia, a mídia, funcionando, liberdade, parlamento e eleições. Bom, nas eleições nós vamos nos dividir. Não sei quem vai ser, qual vai ser o candidato, e quem não. Agora, não tenhamos ilusões. O presidente Bolsonaro que foi apoiado, ganhou a eleição, perdeu um pouco de apoio, mas ainda tem apoio. Eu acho que é preciso ver se o outro lado, se existir um outro lado (sic), vai ter força pra ir sozinho. A nossa regra eleitoral obriga a haver dois turnos. No segundo turno, é pra lá, pra cá, pra lá”. A entrevista completa pode ser vista aqui
Ou seja, para Fernando Henrique Cardoso, entre outros pontos abordados na entrevista:
a) Jair Bolsonaro não cometeu até agora qualquer crime de responsabilidade, logo, as mais de três dezenas de pedidos de impeachment que enfeitam a mesa de Rodrigo Maia não passaram de bazófias de quem quer “derrubar presidente eleito”;
b) os inquéritos e investigações ora em curso no Supremo Tribunal Federal, no Tribunal Superior Eleitoral e na Procuradoria Geral da República, para apurar possíveis crimes eleitorais de Jair Bolsonaro, inclusive abuso de poder econômico, e crimes comuns, como prevaricação administrativa, e, mais que tudo, crimes contra a democracia, para FHC, depreende-se da entrevista, não passam de distrações prejudiciais à recuperação da economia;
c) Jair Bolsonaro não passaria de um presidente sem rumo, que nomeia ministros “aloprados” no MEC; que não é capaz de liderar o país durante uma pandemia;
d) com a devida, “paciência histórica”, Jair Bolsonaro poderá ser derrotado em 2022.
Ao deparar com esse cenário político traçado por FHC, me veio à mente a verve inigualável de Nelson Rodrigues e a história deliciosa de como ele criou a expressão “óbvio ululante”, hoje incorporado ao nosso linguajar cotidiano, sem que muitas vezes saibamos de onde ela surgiu. Vamos a ela:
O grande dramaturgo e jornalista, em suas crônicas do cotidiano e em seu teatro, introduzia, nem sempre do modo lisonjeiro, até pelo contrário, alguns de seus amigos mais fraternos. De um desses, Otto Lara Resende, nasceria o “óbvio ululante”. De acordo com Nelson, certa tarde, “Otto, embora passasse diariamente pelo aterro do Flamengo em seu carro, a caminho do trabalho, nunca se dera conta da existência, não do bondinho, mas do próprio Pão de Açúcar!
Ao se ver subitamente diante da pedra, meteu o pé no freio, rodopiou e parou atravessado na pista. Os carros que vinham atrás também pararam e, por milagre, ninguém bateu. Otto saiu do carro. Atônito, apontava para o Pão de Açúcar e só conseguia balbuciar: “Não é possível! Não estava aqui ontem!”. A asma, sempre ela, o atacou. As pessoas começaram a apear para acudi-lo. Uma delas dedicou-se a abaná-lo com a Revista do Rádio, dizendo: “Calma, meu senhor!”.
E Nelson concluiu: “Durante anos, o Pão de Açúcar, de tão óbvio, passou despercebido por Otto. Era como se não existisse. Mas, um dia, enfim, Otto o enxergou. Era o óbvio ululante. Só os profetas enxergam o óbvio”. (Trecho de crônica de Ruy Castro, biógrafo de Nelson, publicada na Folha de S.Paulo).
O que me leva a concluir, seguindo a lógica de Nelson Rodrigues, que Fernando Henrique Cardoso é um anti-profeta, por não ver, ou não querer ver, o óbvio ululante que todo dia se escancara à sua frente: Jair Bolsonaro não é, nunca foi e nunca será um democrata. Jair Bolsonaro é um homem naturalmente mau que, quando 19 anos atrás, sugeriu o fuzilamento do próprio Fernando Henrique, não o fez como uma mera manifestação retórica.
Fez, sim, como uma manifestação objetiva do seu pensamento político autoritário, militarista, armamentista, que alimenta uma personalidade destituída de qualquer sentido de solidariedade e empatia, como tem demonstrado diariamente em face da tragédia humana da pandemia. Jair Bolsonaro é Brilhante Ustra, e é como Brilhante Ustra que temos que enfrentá-lo. Ou seja, diante de tantas e dramáticas obviedades, elocubrar, como fez Fernando Henrique, sobre alianças políticas em um possível segundo turno na eleição presidencial de 2022, é de uma insensatez descomunal. Primeiro, por ele recusar a alternativa do impeachment sob o argumento pueril da “paciência histórica”.
Paciência que ele próprio não teve com Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff, como se o crime de caixa dois daquele e as chamadas pedaladas fiscais desta – e aqui nem entro no mérito objetivo desses crimes, para não partidarizar meu argumento – fossem suficientes para retirar a ele e a ela do cargo que tinham conquistado com milhões de votos.
Já os crimes de Bolsonaro não passariam de esquisitices de um sujeito despreparado para o cargo, mas que pode ser controlado pela competência e espírito público dos militares que o cerca e o sustentam no cargo. Isto até que no segundo turno da eleição presidencial de 2022, o PSDB – o que Fernando não diz, mas pensa – o retire da presidência pelo voto.
Mas, que crimes passíveis de impeachment teria cometido Jair Bolsonaro, FHC poderia perguntar, visto que parece não enxergá-los? Que fiquemos com apenas um, amplamente documentado nas ruas e avenidas desse país: proceder de modo incompatível coma dignidade, a honra, e o decoro do cargo. O que de mais indigno, desonroso, indecoroso do que anunciar um churrasco no exato momento em que uma epidemia se alastra, infecta e mata milhares de brasileiros, e fazer isto de modo deliberado, em tom de deboche?
O que mais indigno, desonroso, indecoroso do que, ignorando as medidas de sacrifício exigidas à população pelo seu próprio governo, entrar sem proteção facial em padarias, cafés, feiras livres, abraçar e beijar pessoas, inclusive crianças, ao revés inclusive do que o mundo inteiro estava fazendo? O que mais indigno, desonroso e indecoro do que comparecer a uma manifestação antidemocrática, que pede intervenção militar e fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, legitimando-a para acima de qualquer dúvida?
Fernando Henrique Cardoso é um homem que cultiva, e tem esse direito, uma imagem de estadista global, reconhecido e respeitado por lideranças políticas e intelectuais do porte de Ricardo Lago, Bill Clinton, Tony Blair, Vargas Llosa e Manuel Castells, para ficar com esses exemplos. É de se supor, portanto, que ele tenha acompanhado com interesse o recente processo de impeachment a que foi submetido Donald Trump, nos Estados Unidos.
Se acompanhou, saberá que Nancy Pelosi, a presidente (speaker) da Câmara dos Deputados (House of Representatives), e, por isso, a principal liderança do Partido Democrata hoje, tinha a exata noção de que eram escassas as chances, como de fato o foram, de Trump ser impedido, dada a correção de forças no Senado, onde o Partido Republicano tem sólida maioria. E saberá também que a pressão sobre ela, do seu próprio partido, foi forte para que não encaminhasse o pedido de impeachment.
O argumento era o de que, dado o previsível resultado final, isto fortaleceria Trump em ano eleitoral. Como saberá que Pelosi se disse sem alternativa que não fosse o julgamento político do presidente da República, tamanhas eram as evidências de abuso de poder por ele cometido. Para ela, não haveria outra opção, para o bem da democracia, “a não ser agir”, como registrado por todos os noticiários, na época, mesmo que isto viesse em prejuízo eleitoral do Partido Democrata.
Nancy Pelosi não se deixou distrair, enxergando com clareza exemplar o óbvio ululante da política contemporânea: o que está em jogo é a própria democracia; o seu presente, o aqui, agora. Jair Bolsonaro não é uma circunstância passageira na política brasileira. Ele é parte de um movimento global que vai além da internet, das redes sociais, da desinformação, da radicalização de mentira como talvez a mais letal arma política dos dias de hoje.
Esse movimento tem hoje seis palcos principais, mas não só: os Estados Unidos, de Donald Trump; a Rússia, de Vladimir Putin; a Hungria, de Viktor Urban; o Brasil, de Jair Bolsonaro; e a Itália, de Matteo Salvini (ainda que este, no momento, esteja à margem do governo em seu país). Mais do que isso, esse movimento se pretende uma renovação/restauração ideológica assentada sobre uma obscura doutrina, chamada Tradicionalismo, que tem hoje como seus principais expoentes o russo Alexandre Dugin, o brasileiro Olavo de Carvalho, e o americano Steve Bannon, nessa ordem. E nessa ordem porque, se Dugin e Olavo são presenças objetivas junto a Putin e Bolsonaro, Bannon, intelectualmente o menos preparado dos três no que toca ao Tradicionalismo, há tempo perdeu seu lugar junto a Trump, e ora orbita, meio sem rumo, ao redor de Salvini, e, com rumo aparente, ao redor de Bolsonaro, graças ao fascínio que exerce sobre o seu filho Eduardo.
E aqui volto a Fernando Henrique, tomando a liberdade de sugerir a ele, leitor contumaz, como se sabe, duas referência bibliográficas: o livro de Benjamin Teitelbaum, War for Eternity – Inside Bannon’s Far Right Circle of Global Power Brokers (Harpers’s Collins, 2020), e o artigo do professor Venício A. de Lima, intitulado “Tradicionalismo: a direita no poder”, publicado no site Carta Maior, em 15 de junho último. Artigo que, partindo do livro, revela, por exemplo, que o querubínico Ernesto Araújo, atual chanceler brasileiro – posto que FHC tem justo orgulho de já ter ocupado -, não faz o que faz, e escreve o que escreve, porque é só um um tipo obtuso, que não merece ser levado a sério. Porque, mesmo se obtuso, Araújo é, até pela formação acadêmica que o Itamaraty oferece aos seus quadros, um articulado e melhor intérprete entre nós do Tradicionalismo, melhor até do que o guru bolsonarista, Olavo de Carvalho.
Nada do que acontece no Brasil hoje é por acaso. Nada do que acontece no Brasil hoje é circunstancial. Quer queiramos ou não, fomos enredados numa trama política global que, excêntrica que seja, ou ridícula que pareça, não pode ser tratada anti-profeticamente como Fernando Henrique está a fazer, nos pedindo “paciência histórica” diante da ululante obviedade que ele, mas não só ele, se recusa a ver: ou se impede Jair Bolsonaro, ou nossa frágil democracia pode morrer.
*Professor Emérito
Faculdade de Comunicação
Universidade de Brasília (UnB)