Eu era muito jovem quando comecei a participar da vida política. Eu me reunia com um grupo de amigos na Movelaria de um deles, Pedro Paiva, onde conversávamos sobre literatura e sonhávamos com uma sociedade mais justa, como devem fazer os jovens. A busca da justiça social me fez ser candidato a deputado, iniciando meu destino — minha vocação era a literatura.
Ao longo de tantas circunstâncias da vida política do Brasil de que participei, nunca deixei esse sonho se apagar, pois, sem ele, a política é uma coisa menor, que merece o mal juízo que tantos dela fazem.
Presidente, meu lema foi “tudo pelo social”, e como governador, deputado, senador foi o que sempre busquei. Infelizmente o País e o mundo foram se afastando dos caminhos do Welfare State, o Estado de bem-estar social. Nele a prioridade é o direito à vida, à saúde, à educação, ao trabalho, à aposentadoria.
Esses direitos foram gravados em nossa Constituição. Mas, enquanto iam sendo implantados, iam sendo ameaçados. Há vinte anos eu escrevia que o capitalismo — que, sob ameaça do comunismo, buscara assegurar um Estado democrático que garantisse ao trabalho remuneração adequada, saúde, educação, justiça social — com o fim da dessa ameaça centrara “a grande investida [em] estabelecer-se, a nível global, uma política de destruição do Welfare State”.
Eu insistia que a economia de mercado estava se tornando dogmática e que isso era o princípio do fim. Infelizmente o quadro em que vivemos, nesse sentido, é desolador. O extraordinário esforço de construir um sistema capilar de saúde para todos, o SUS, vive sob ataque: o modelo americano de privilegiar a prestação privada de saúde dividiu os doentes entre os que podem pagar e os que não podem pagar, fazendo desse direito básico uma simples mercadoria. Os planos de saúde faturam anualmente mais de 220 bilhões; para mostrar a iniquidade do sistema basta dizer que com a pandemia seu lucro cresceu em 70%.
A vitória das ideias do mercado é insofismável em todas as áreas. Ele começa seu controle verificando que só poderá ser presidente da República quem tiver sua bênção. A diferença de renda entre os mais pobres e os mais ricos, que tinha caído no meu governo e no do Presidente Lula, voltou a disparar: a renda média dos 10% mais ricos é 30 vezes a dos 50% mais pobres. As sucessivas reformas constitucionais têm driblado a cláusula que veda o retrocesso social para retirar direitos do trabalhador — já se anuncia nova reforma trabalhista — e destruir a previdência social. Mais de metade dos trabalhadores ocupados estão no mercado de trabalho informal, enquanto trinta milhões estão desalentados e nem procuram trabalho.
É uma maneira de garantir a inviabilidade da previdência pública, forçando a criação de um sistema semelhante ao que não dá certo na saúde — a não ser para o mercado. O transporte público é privado e custa mais caro para os mais pobres, que moram longe de onde trabalham; a segurança pública, em vez de proteger, também ameaça as famílias; a educação pública se arrasta para sobreviver, inclusive nas universidades, onde até o heroísmo de fazer pesquisa e criar ciência está sob ataque; o meio ambiente vive sob fogo.
O Brasil e os políticos precisam voltar a ter a justiça social como o seu objetivo.
— José Sarney. Ex-presidente da República. Ex-senador. Ex-governador do Maranhão. Ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras