As ameaças do presidente da República contra os demais Poderes (Legislativo e
Judiciário, representado pelo STF) fazem há algum tempo parte do quotidiano da Nação.
Não foram poucas as vezes em que o primeiro mandatário, filhos e militares que gravitam o seu entorno proferiram ataques às instituições de Estado. Para “fechar o STF basta um
cabo e um soldado” – disse um dos filhos.
A última sexta-feira (22) vai entrar para história. Não sabemos se por privilégio ou má
sorte, foram necessários mais de 130 anos desde a proclamação da República para o Brasil assistir a dois atos num mesmo dia que bem resumem a cena política descortinada pelo menos desde 2013”.
Vamos ao primeiro deles: ainda no meio da tarde daquele dia, o ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, divulgou nota criticando o ato do ministro Celso de Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), que encaminhou à PGR (Procuradoria-Geral da República) pedidos de partidos e parlamentares de
oposição para que o celular do presidente fosse apreendido e periciado.
O general da reserva tinha visto na determinação do decano do Supremo – ato próprio de ministro que conduz um inquérito – algo “inconcebível” e “inacreditável”. Para ele, “seria uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível de outro Poder, na privacidade do Presidente da República e na segurança institucional do país”.
O ato do general ganharia um dia depois apoio do ministro da Defesa, Fernando
Azevedo, que fala aparentemente pelo conjunto das forças armadas. O segundo evento: se a evidência de ameaça explícita de golpe já tinha elevado a temperatura do ambiente político, o choque com a desfaçatez viria algumas horas depois.
A divulgação do vídeo da reunião ministerial no mesmo dia 22 de abril por ordem do ministro do STF Celso de Mello revelaria ao país um pouco de tudo: palavras de baixo calão, agressões a governadores e a ministros do STF, ameaças de rupturas institucionais e um plano macabro do Ministro do Meio Ambiente de destruição da Amazônia.
Fanatismo, sectarismo, falta de pudor e talvez não expressem tudo o que se viu na reunião ministerial. Foram precisos mais de 130 anos de República para que o povo brasileiro pudesse ver e ouvir a mais alta da administração do país apropriar-se das instituições e tramar a proteção policial para amigos e familiares do presidente, além de para ele próprio, contra investigações criminais.
O excesso de grosserias e cafajestadas somente não encontrou ressonância maior que a
falta de projetos para afastar o país da grave crise econômica, social e sanitária. À mesa
da reunião faltou a compaixão com o povo brasileiro. Sobraram a sabotagem do Ministro
do Meio Ambiente contra a proteção da Amazônia e o oportunismo explícito de como
desmonta a legislação ambiental no instante em que o país tem sua atenção voltada à
crescente perda de vidas humanas para a Covid-19.
Ao conhecimento público também veio a indiferença do ministro da economia Paulo Guedes para com as pequenas e médias empresas. É grave para o conjunto de empresários e trabalhadores o fato de a pandemia destruir emprego e renda pela falta de crédito público. Do conjunto da obra nada se compara, porém, ao desejo explicitado pelo presidente da República de levar o país à guerra civil: “Por que eu tou armando o povo?
Porque eu não quero uma ditadura! (…) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu
quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado” – disse o
presidente em meio a miseráveis adjetivos. O macabro projeto do presidente de quebrar as regras do jogo democrático e de estimular a violência nas ruas não se resumiu às palavras:
“Eu peço ao Fernando (Ministro da Defesa) e ao Moro (Ministro da Justiça) que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta!” O qualificativo rastaquera tinha alvo certo: os governadores e os prefeitos que cumprem a Lei e protegem a população contra a propagação da pandemia. Já a portaria seria publicada no dia e tratava de elevar a quantidade de munição que poderia ser comprada por um civil de 200 unidades por ano para 550 por mês.
Menos pelo palavrório e mais pelas ameaças de ruptura a reunião expôs o único programa do presidente da República: o de construção de um estado miliciano e autoritário. Assim como Luiz XIV, monarca francês que viveu no século XVII, o pretenso déspota dos trópicos vê na Constituição Federal a expressão da sua personificação. “A Constituição sou eu”, disse ele.
Nada mais natural, portanto, a ideia de que o estado deve ser utilizado para proteção da
família e de seus amigos; natural também a ideia de fechar o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal. Por que não interferir na Polícia Federal? Por que não
aparelhar o serviço de informações do Estado ou mesmo criar seu o seu próprio? O
objetivo do déspota é sempre o mesmo: perseguir minorias, silenciar a oposição, atacar
jornalistas, censurar a cultura, concentrar poder.
Vale aqui a máxima de Alexis de Tocqueville, 1835, sobre a autoridade do déspota: “Seus filhos e seus bons amigos constituem para ele a totalidade da espécie humana”.
Em entrevista ao Le Monde de domingo (24), o Diretor Executivo do Observatório
Político da América Latina e Caribe (Opalc) Gaspard Estrada, disse: o “único projeto de
Bolsonaro é destruir as instituições da Nova República que saíram da Constituição de
1988”.
Ele lembrou a propósito a declaração dada em março de 2019 por ninguém menos
que o próprio Bolsonaro durante evento da embaixada do Brasil em Washington.
A reunião ministerial serviu também para desmistificar o que os principais analistas
políticos da imprensa corporativa até há pouco martelavam: Jair Bolsonaro está longe de
ser controlado pelas elites econômicas e pelas instituições que o criaram. O processo de
degradação institucional segue avançando e com ele o desejo do presidente de mais poder, de armar milícias e de eliminar a oposição.
Depois da divulgação do vídeo ministerial parece que não poucos mais duvidam que está
em curso no País a instituição de uma ditadura. De nada adianta dizer que o presidente
foi eleito; que as instituições funcionam e quejando. Se olharmos bem a história não será difícil perceber que na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler o fascismo também ascendeu ao poder pelo voto.
O ato do presidente de armar a população precisa ser levado a sério, como também suas palavras; está em andamento no país um movimento fascista de estado; está em curso um projeto de superação da deteriorada democracia por um regime de força. Os ingredientes desse movimento estão presentes: um presidente reacionário, despótico e perigoso; militares complacentes, quando não coniventes, ocupando mais de uma dezena de ministérios; uma minoria fanática, mas barulhenta, que o segue disposta a sacrificar-se pelo líder; um discurso profundamente conservador, superficialmente crítico dos problemas nacionais, mas capaz de mobilizar setores da sociedade; o culto ao militarismo e à violência.
Nunca a atuação do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal, das instituições
foi tão necessária. Esperar que o projeto de Jair Bolsonaro se consolide ou que o estado
autoritário seja proclamado no Diário Oficial pode não ser uma boa aposta.