Quem poderia imaginar que em 2021, não teríamos a avenida colorida pela Portela, Mangueira, Salgueiro, Império, Beija-Flor, União, Grande Rio, Estácio, Viradouro, Tuiuti, Mocidade, Unidos da Tijuca, Vila, São Clemente…
Quem imaginaria que teríamos um “Vale a Pena Ver de Novo” entremeado por um “melhores momentos” na Globo, narrados pelo Ailton Graça e pelo Milton Cunha? Nem no Canal Viva isso seria vaticinado. Quem imaginaria tal coisa mesmo de forma premonitória? Nem Nostradamus, muito menos Mãe Dinah. Seriam chamados de loucos. Talvez os loucos sejam felizes no país dos Baurets com tantos cometas à solta.
Este ano não será jamais lembrado, cairá na memória do esquecimento. Tudo será diferente. Em 2021 vamos ficar sem os comentários de Leci, nossa amada sambista raiz – ainda que sambistas não tenham caule, do espalhafatoso e hilário “bafônico, amado”, criteriosíssimo e de um luxo só, Milton Cunha, que poucos sabem, é pós-doutor em história da arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, do nosso eterno Orfeu da Conceição magistralmente interpretado por Haroldo Costa a gentileza, delicadeza, simpatia e carisma em pessoa.
Ficaremos sem as polêmicas do que pode ou não pode ser mostrado, do que é sagrado ou profano, o ganha ou não ganha, quem manda mais ou menos. Tem patrocinador ou patrono? O tema e o samba-enredo chicletearam na passarela? A comissão de frente, quiçá a de fundos. Para onde a Rosa vai? E o Barros? Qual foi o passe? Quanto valeu o cachê deste ano? Nada teremos, nada saberemos. Grassará o silêncio, quebrado apenas pelo piar das corujas-buraqueiras, residentes permanentemente na obra primorosa de Niemeyer.
Como vamos rir das trapalhadas causadas pelo atropelo do ‘ao vivo’, pelas perguntas piegas e sem criatividade por repórteres ensurdecidos pelas baterias e pontos eletrônicos, da ‘emoção muito grande de estar nessa avenida trazendo alegria para o meu povo’, do ‘estou muito emocionada, não consigo falar’. Já perceberam que o sentimento é sempre o mesmo e as emoções bem similares? E o Carvalhão que perdeu o faturamento deste ano; o que suspenderá no período da folia?
Nos camarotes vazios, convidados, os vips dos vips, quem pegou quem, quem foi barrado no baile, quem caiu pelas tabelas, quem se acabou. Tamanhos, excentricidades, modernidades, tudo isso inexistirá. Não terá Caras Especial Carnaval. Bom, vamos combinar que isso não fará tanta falta assim.
Tudo bem, a compilação é uma utopia real, uma máquina do tempo, aglutinadora, transformada em máquina de sonhos. Rever enredos do naipe de “Orfeu – O Negro do Carnaval” da Viradouro, “Liberdade! Liberdade! Abra as Asas Sobre Nós” da Imperatriz, “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia” da beija-Flor e “Peguei um Ita no Norte” (Explode Coração) do Salgueiro em um só momento, só a caixa mágica da parabólica Camará pode proporcionar, a questão é que não sentiremos a emoção de ver Vilma dançar, com o seu estandarte na mão, de assistir Sorriso e seu lábaro instrumental, parceira de rodopios e evoluções, o Mestre Marçal e seu apito fenomenal e a paradinha da bateria com solos de tamborim e toques para os Orixás, da Furiosa, da Soberana, da Suwingueira de Noel e da, para lá de fantástica, Tabajara do Samba em tempo real.
Não teremos Dudu Paz e Amor se acabando na avenida com seu chapéu mais que gentílico, símbolo de carioquice plena de quem ama a Cidade Maravilhosa, o samba, o Carnaval, a Portela, respeita todas as religiões. Do Seu Zé Pelintra sim, com muita honra e fé, Saravá!
E a saudade que nos dará a interpretação do ‘dez, nota dez’, criação popularizada por Carlos Imperial, imortalizado há 18 anos por Jorge Perlingeiro. Só se for agora, num oferecimento de Camélia Flores sob os auspícios de Álvaro, é Samba de Primeira. Quem vencerá esse mar de sambas-enredos geniais, qual escola será a melhor da compilação de, quase, todos os tempos?
Esse ano, definitivamente não será [jamais] igual a qualquer um que passou. Sairemos num quem te viu, quem te vê inebriante pela cabrocha mais bonita, numa lembrança da minha escola que estava tão bonita, em máscaras negras, pierrô e colombina, seresteiros em poesia e amor.
O ao vivo em cores perdeu a graça.
— Carlos Monteiro é jornalista